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A quietude já não pertencerá a este tempo. São inúteis todas as palavras. Todos os corpos.
Quando estão serenos, os rios acomodam-se num sentido comum – arriscam-se a percorrer juntos todo o caminho da morte.
O tempo dissolve os ângulos da casa de passar as tardes. As paredes cobertas de verdete exsudem em espasmos lentos.
Para trespassar corpos, as palavras vomitam o mundo de trás para a frente.
Um corpo enrijece com a secura das palavras.
O meu guardião inventa um sorriso para findar a noite.
O meu guardião quer abrir um buraco no chão e sorver um rio.
Os rios subterrâneos conjugam-se em labirinto. A foz como enigma comum.
Uma falha é sempre a última falha. De umas vezes, morre-se. De outras, não.
Na calçada do general, as casas estão ligadas aos seus rios por longas linhas finas e invisíveis.
Nas costas, no exacto instante de um beijo, o calor do sol de um verão tardio.
Lembro-me: sugámos laranjas azuis. Sob uma tempestade. Não me lembro se rimos.
A água dos rios subterrâneos agita-se. No firmamento, uma lua inesperada.
Como fazer uma pergunta com uma palavra cindida?
Meaume, o gravador, morreu em Utrecht, aos 50 anos, nos braços de Marie Aidelle.
Sob a casa de passar as tardes, um rio (mais um?) reduz as margens. Na calçada do general, esvai-se a luz.
O meu guardião pede-me para lhe contar uma história. “Era uma vez um rio...”
Para um lado ou para o outro? Se alguém sabe a resposta, não a partilha. O meu guardião rasga papéis inúteis.
Uma partícula de dúvida aniquila um gesto. E a dúvida é: como ter a certeza da decisão de um gesto?
Quantas vezes subiste e desceste a calçada do general? Faço esta pergunta inutilmente – se tivesse resposta também ela não guardaria a chave do enigma. Partiste. Eis um acontecimento tão indeclinável como um rio preso ao seu destino. E palavras a mais.
A casa de passar as tardes é frágil. Sabê-lo, fortalece-a.
Vinho tinto aquecido numa rocha ao rubro. Um acorde de viola de arco. O sexo húmido.
Se desistir não chego lá. Se perseverar também não.
Nem um som. Nem um gesto. Noite densa.
Passamos muito tempo a inventar perguntas. Ontem foi a minha vez.
O meu guardião não sairá nunca da casa de passar as tardes. Nem mesmo quando a sua cor e a das paredes se confundirem.
Há um tempo para tudo, dizem. E depois, sempre, o embaraço de um gesto fora de tempo.
Por penúria de matéria refaço mais uma vez o inventário.
Também conto palavras. Em cada contagem uma perda. O dilema é: emudecer ou arriscar.
A pergunta já não é: qual será a última palavra? Mas: onde estará?
Andamos, eu e o meu guardião, confundidos com os rios. Voláteis. De humores. Vagos e fugidios.
A calçada do general está vestida de luzes de antes das cinzas.
Um rio de sangue, subterrâneo. Não é possível lavar um rio, lembra-me o meu guardião.
Crescem mais rios subterrâneos sob a casa de passar as tardes.
De noite os nomes resistem. Por isso inventamos sombras.
No alto da cidade deixei palavras em equilíbrio precário. Em baixo, o rio – entre rios.
Na casa de passar as tardes, especula-se: com quantas palavras se faz um rio?
Não me decido: é casa ou prisão? Ou: uma não existe sem a outra? Ou: é tudo uma questão de pronúncia?
O meu guardião: uma casa faz-se de firmezas. Eu: com quantas, exactamente?
Não mordas as palavras por dentro, ataca o meu guardião, o centro é demasiado amargo. Eu sei, mas agora não posso parar.
Na China fabricam cadernos de capa vermelha com uma rosa, vermelha, em baixo relevo.
Falta-me um rio de sombras. E a ameaça de uma tempestade. Recomeçar tudo.
Um corpo vazio fere. A escama das palavras fere – a ordem dos factores não é arbitrária.
Ou o contrário: um turbilhão de palavras num corpo sem ar. Ou o contrário.