quarta-feira, dezembro 31, 2003


A quietude já não pertencerá a este tempo. São inúteis todas as palavras. Todos os corpos.


Quando estão serenos, os rios acomodam-se num sentido comum – arriscam-se a percorrer juntos todo o caminho da morte.


O tempo dissolve os ângulos da casa de passar as tardes. As paredes cobertas de verdete exsudem em espasmos lentos.

Para trespassar corpos, as palavras vomitam o mundo de trás para a frente.

Um corpo enrijece com a secura das palavras.

O meu guardião inventa um sorriso para findar a noite.

terça-feira, dezembro 30, 2003


O meu guardião quer abrir um buraco no chão e sorver um rio.

segunda-feira, dezembro 29, 2003


Os rios subterrâneos conjugam-se em labirinto. A foz como enigma comum.

domingo, dezembro 28, 2003


Uma falha é sempre a última falha. De umas vezes, morre-se. De outras, não.

Na calçada do general, as casas estão ligadas aos seus rios por longas linhas finas e invisíveis.


sábado, dezembro 27, 2003


Nas costas, no exacto instante de um beijo, o calor do sol de um verão tardio.

sexta-feira, dezembro 26, 2003


Lembro-me: sugámos laranjas azuis. Sob uma tempestade. Não me lembro se rimos.

A água dos rios subterrâneos agita-se. No firmamento, uma lua inesperada.

quinta-feira, dezembro 25, 2003


Como fazer uma pergunta com uma palavra cindida?

Meaume, o gravador, morreu em Utrecht, aos 50 anos, nos braços de Marie Aidelle.

quarta-feira, dezembro 24, 2003


Sob a casa de passar as tardes, um rio (mais um?) reduz as margens. Na calçada do general, esvai-se a luz.

O meu guardião pede-me para lhe contar uma história. “Era uma vez um rio...”


Para um lado ou para o outro? Se alguém sabe a resposta, não a partilha. O meu guardião rasga papéis inúteis.

Uma partícula de dúvida aniquila um gesto. E a dúvida é: como ter a certeza da decisão de um gesto?

Quantas vezes subiste e desceste a calçada do general? Faço esta pergunta inutilmente – se tivesse resposta também ela não guardaria a chave do enigma. Partiste. Eis um acontecimento tão indeclinável como um rio preso ao seu destino. E palavras a mais.

A casa de passar as tardes é frágil. Sabê-lo, fortalece-a.

terça-feira, dezembro 23, 2003


Vinho tinto aquecido numa rocha ao rubro. Um acorde de viola de arco. O sexo húmido.

Se desistir não chego lá. Se perseverar também não.

Nem um som. Nem um gesto. Noite densa.

Passamos muito tempo a inventar perguntas. Ontem foi a minha vez.

segunda-feira, dezembro 22, 2003


O meu guardião não sairá nunca da casa de passar as tardes. Nem mesmo quando a sua cor e a das paredes se confundirem.

Há um tempo para tudo, dizem. E depois, sempre, o embaraço de um gesto fora de tempo.

sábado, dezembro 20, 2003


Por penúria de matéria refaço mais uma vez o inventário.

Também conto palavras. Em cada contagem uma perda. O dilema é: emudecer ou arriscar.

A pergunta já não é: qual será a última palavra? Mas: onde estará?


Andamos, eu e o meu guardião, confundidos com os rios. Voláteis. De humores. Vagos e fugidios.

A calçada do general está vestida de luzes de antes das cinzas.

quinta-feira, dezembro 18, 2003


Um rio de sangue, subterrâneo. Não é possível lavar um rio, lembra-me o meu guardião.

Crescem mais rios subterrâneos sob a casa de passar as tardes.

De noite os nomes resistem. Por isso inventamos sombras.

terça-feira, dezembro 16, 2003


No alto da cidade deixei palavras em equilíbrio precário. Em baixo, o rio – entre rios.

Na casa de passar as tardes, especula-se: com quantas palavras se faz um rio?

Não me decido: é casa ou prisão? Ou: uma não existe sem a outra? Ou: é tudo uma questão de pronúncia?

O meu guardião: uma casa faz-se de firmezas. Eu: com quantas, exactamente?

quinta-feira, dezembro 11, 2003


Não mordas as palavras por dentro, ataca o meu guardião, o centro é demasiado amargo. Eu sei, mas agora não posso parar.

Na China fabricam cadernos de capa vermelha com uma rosa, vermelha, em baixo relevo.

Falta-me um rio de sombras. E a ameaça de uma tempestade. Recomeçar tudo.

Um corpo vazio fere. A escama das palavras fere – a ordem dos factores não é arbitrária.

Ou o contrário: um turbilhão de palavras num corpo sem ar. Ou o contrário.