sábado, junho 21, 2003

CRÍTICA (1)

Nos últimos meses, a imprensa portuguesa tem dado um espaço considerável a polémicas sobre a crítica de poesia. Mais espaço, julgo eu, que muitos dos textos críticos merecem, sobretudo se pensarmos que o espaço escasseia para as obras de poesia. No DNA de hoje, Pedro Mexia insurge-se contra o dossier «crítica da crítica» da revista Apeadeiro (Quasi) que, segundo ele, não passa de um conjunto de prosas «rancorosas e agressivas». Não li o dito dossier e não pretendo tomar partido por ninguém. Mas não pude deixar de me lembrar de Blanchot. Aproveito, por issso, para relembrar um texto deste autor e partilhá-lo aqui (leitura realizada para o meu livro Teatro da Cornucópia. As Regras do Jogo, Lisboa, frenesi, 1999).Sem mais comentários:

Num pequeno texto da década de cinquenta (Maurice Blanchot, «La condition critique», Trafic, Revue de Cinéma, Paris, nº 2, Printemps 1992: 140-142. O texto foi originalmente publicado em L’Observateur, nº 6, de 18 de Maio de 1950), Blanchot reflecte sobre a necessária impureza da crítica e em como nessa impureza se revela justamente a sua razão de ser.
Blanchot coloca uma questão essencial que importa desde já nomear: a relação conflitual entre a obra de arte e a crítica, um antagonismo entre a obra como fechamento e a crítica como desvendamento.
Se as obras são de uma infinita solidão, como dizia Rilke, nada há pior para elas do que a crítica ao chamar a atenção sobre as obras, ao fazê-las sair desse ponto de fascinante discrição onde elas se formaram e onde gostariam de se fechar, ao abrigo de toda a curiosidade pública. Mas a crítica é uma força que passa rápida e na força da sua soberania introduz sem precauções as obras nas mãos do mundo.
A essência do crítico moderno é ele estar ligado ao instante, à acção, ao quotidiano fugitivo, à instantaneidade. O crítico não deve ter arte própria nem talento pessoal, ele não deve ser o centro. É certamente um olhar, mas um olhar anónimo, impessoal, vagabundo.
A obra, na sua intimidade fechada, é ciumenta, desejosa de negar o exterior: a tarefa da crítica não pode deixar de ser a de seu antagonista. Mas para contrariar a obra de arte a crítica deve ao mesmo tempo aproximar-se dela, de a compreender, de a trair, não porque não a compreenda, mas exactamente porque ela é um esforço muito grande de compreensão. Mas a interpretação mais fiel é também a mais infiel, porque ele expõe completamente a obra à verdade do dia banal quando a natureza da obra é a de escapar à verdade. O crítico que se devote excessivamente à intimidade da arte acaba por mergulhar na sua obscuridade e por negar-se a si próprio. Deixa de existir a vontade maldosa ou caprichosa momentânea que ilumina por breves instantes um livro (ou o negligencia) e dele tira o que quer. Torna-se numa boa vontade assídua que ama a cultura, que ama os livros, os respeita e os salva, uma submissão sem limites à compreensão, uma espécie de generosidade insípida, uma vida inteira fechada nos limites dos livros e completamente consagrada a estudá-los, a louvá-los, a enriquecê-los, a fazê-los durar e, finalmente, a elevá-los ao céu sublime do intemporal: estranho encantamento. Esta relação, contudo, só alcança a sua verdade no momento em que crítico e arte se confundem, quando o que chamamos consciência criativa aceita perder-se no olhar superficial do quotidiano e se afirma cúmplice da preocupação que antes desprezava. Se daqui resulta uma infeliz confusão ou um consentimento estéril não importa. O importante é que o criador abandone a grande vanidade para onde a criação o lança e se declare solidário do presente transitório que a crítica sem futuro lhe assegura.

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