domingo, novembro 23, 2003
A calçada do general continua triste – mas agora tem luzes falsas penduradas em arcos de ferro. O meu guardião rumina pensamentos de sabotagem.
O meu guardião olha há várias horas para uma tampa de caneta. É de temer o pior.
Um poeta procura decifrar um corpo. De mãos nuas e ainda com cinza nos olhos.
Anoitece na casa se passar as tardes. Colamo-nos às paredes e esperamos pelo primeiro grito.
Perscruto sombras no negro das paredes. Antigamente, vertiam copiosas lágrimas.
Acendo um livro – mais um. As cinzas correm para o rio mais próximo.
Em tempos, o meu guardião aprendeu a arte de enxertar rios. Agora é a minha vez.
Onde guardaste a memória? O meu guardião é um ser infinitamente paciente.
sexta-feira, novembro 21, 2003
terça-feira, novembro 18, 2003
terça-feira, novembro 11, 2003
O meu guardião perdeu o seu caderno diário azul. Folhas imaculadamente em branco. Uma vida perdida. Aconchego-me mais no escuro. Respeito a sua dor.
Regresso de outra casa. Tal como a nossa, erguida com palavras. Tal como a nossa, a refazer fundações. Massa feita de corpos. A morte entre as fissuras.
Mordo uma laranja ao fim da tarde. E mordo. O sabor é sempre o mesmo. É mentira.
A marca na parede. O canto obscuro do quarto. Um não a ricochetear nas paredes. O crânio a explodir.
Tapa-me. Tenho frio. Sempre o mesmo frio. Tapa-me. Tapa-me. Tenho frio.
O rio de lava ascende à calçada e cobre-a de cinza. A casa desloca-se. Como o mundo. Perto da foz, agulhas de gelo.
Um xilofone com teclas de água. O meu guardião à procura de música.
Subtraí uma palavra ao mundo. Uma só. Inominável pedaço de carne. E ainda sangra.
sábado, novembro 08, 2003
O tempo distende-se. Compacta-se. Assim passa os dias o meu guardião. Com os fios do tempo a tecer vazios.
Junto à casa de passar as tardes há outras casas. Enxames de vozes. Retinir de vidros. Silenciam-se ao chegar da noite.
Hoje trouxe o cansaço das grandes planícies. E cheiros de manjerona e alecrim. Foi preciso um rio para me recompor.
O meu guardião mede as palavras do dia. Entre os espaços em branco adormece. À noite finge cansaço. E eu finjo acreditar.
Sob a casa de passar as tardes corre um rio de lava. E nos céus um alarme de mudança.
Há segredos nos textos. Textos secretos, contraria o meu guardião. Controvérsia antiga.
Um corpo dói, quando se desperdiça. Doença das palavras, chama-lhe o meu guardião.
Todos os dias o meu guardião sacode o seu pó de ouro.
Digo: não sei. E depois falam-me com palavras frouxas.
sexta-feira, novembro 07, 2003
Afectos (36) - Dom João
Dom João, de Odon von Orvath, pela Escola de Actores do Cendrev, encenação de Tiago de Faria.
Sábado a Segunda (8 a 10 deste mês), no Teatro da Garagem.
quinta-feira, novembro 06, 2003
Na Casa de Passar as Tardes (1)
Subo a calçada do general. Poupo palavras. Regresso. Confirmo a morada. A casa de passar as tardes. O guardião consome oxigénio. Saúdo-o. Na calçada começa a rolar uma esfera de cinza. A náusea vem depois.
Perto do rio Mondego há uma casa feita de palavras. Um castor velho ocupa-se a suprimir-lhe as excrescências.
Um texto habitado por fantasmas. Reconhece-se pelo óxido de ferro.
O concon é um peixe-crustáceo. A sua captura é um jogo de sedução. Devolve-nos o passado e fere o sabor. Não deveria ter nome.
Uma vontade de chorar quando o corpo se excede. A morada torna-se habitável. Perto do júbilo.
A chuva desagrega a cidade. É preciso olhar de novo. Passado o engano, abrigo-me no escuro.
Ao guardião, no seu elemento, entrego as palavras. Todas as palavras. Próximas do limite.
Falamos sobre limites. Sobre elementos. Sobre repetições.
Amanhã, o guardião cumprirá, renovando, o seu elemento. Partirei em busca de outras águas. E a eterna dúvida será a nossa comum perturbação. E agora, na noite, pode esboçar-se o risco infinito da morte. À superfície das águas.
Um corpo tem as palavras exactas. E não se diz.
Fundo. Uma lágrima abre fundo um sulco. Por vezes invisível. Por vezes descoberto tarde de mais.
Amanhã não morro. Prometo.
O meu guardião e eu: partilhamos a mesma cela.
A água a rasar os pés. A beijar a casa.
Queimo oxigénio para separar as palavras. Afastar umas das outras até ao nascer da luz.
Queimo pontes e de olhos vendados atravesso rios.
A viagem é caminhar para a perda. No regresso solto as escamas. O cheiro de perto do fim.
E o meu guardião confirma: decomposição molecular dos sentidos. Insubstância da gramática.
A casa de passar as tardes não tem raízes. Mas sobram-lhe galhos. Em certas horas do dia são-lhe acrescentados dedos. Pequenos artefactos quase inúteis.
Breves fracassos. Nunca as promessas se cumprem.
Na calçada do general o tempo escorre na pressa de apagar os passos perdidos.
O meu caminho de sempre é só meu. Cheio de lugares comuns – mas desabitados. Ainda.
Escrevo sobre as vossas palavras, os modos de se mostrarem ao mundo – com outras palavras. Subjugadas, as minhas e as vossas, à vertigem dos desencontros. O sorriso do meu guardião, como sempre, impenetrável.
Não devo nomear os rios. Nem as sombras.
As palavras servem-se frias – como os corpos antigos.
A palavra fere o flanco. Um modo de dizer – silenciar.
Duro, duro é o dizer. Pesadelos de mandíbulas. Nós estilhaçados.
O meu guardião conta os dias. Assegura a compactação dos micro-organismos. Confirma a declinação da luz. Já disse: habitamos a mesma cela.
Uma poeira de adiamentos sobre os móveis na casa de passar as tardes. Observo os traçados, pouco nítidos, de algumas deambulações erráticas. Uma arqueologia perigosa. Há sempre à espreita um alçapão falso.
Gosto de enigmas. Troco-os com o meu guardião. Especialmente de noite, à luz de um cigarro.
(nome dado pelo meu guardião a este conjunto de palavras escritas entre 24 de outubro e hoje: Na Casa de Passar as Tardes. Continuaremos, depreendi do seu sorriso)
quarta-feira, novembro 05, 2003
segunda-feira, novembro 03, 2003
O meu caminho de sempre é só meu. Cheio de lugares comuns – mas desabitados. Ainda.
Escrevo sobre as vossas palavras, os modos de se mostrarem ao mundo – com outras palavras. Subjugadas, as minhas e as vossas, à vertigem dos desencontros. O sorriso do meu guardião, como sempre, impenetrável.
Não devo nomear os rios. Nem as sombras.
As palavras servem-se frias – como os corpos antigos.
A palavra fere o flanco. Um modo de dizer – silenciar.
Duro, duro é o dizer. Pesadelos de mandíbulas. Nós estilhaçados.
domingo, novembro 02, 2003
A água a rasar os pés. A beijar a casa.
Queimo oxigénio para separar as palavras. Afastar umas das outras até ao nascer da luz.
Queimo pontes e de olhos vendados atravesso rios.
A viagem é caminhar para a perda. No regresso solto as escamas. O cheiro de perto do fim.
E o meu guardião confirma: decomposição molecular dos sentidos. Insubstância da gramática.
A casa de passar as tardes não tem raízes. Mas sobram-lhe galhos. Em certas horas do dia são-lhe acrescentados dedos. Pequenos artefactos quase inúteis.
Breves fracassos. Nunca as promessas se cumprem.
Na calçada do general o tempo escorre na pressa de apagar os passos perdidos.
sábado, novembro 01, 2003
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