quinta-feira, novembro 06, 2003

Na Casa de Passar as Tardes (1)


Subo a calçada do general. Poupo palavras. Regresso. Confirmo a morada. A casa de passar as tardes. O guardião consome oxigénio. Saúdo-o. Na calçada começa a rolar uma esfera de cinza. A náusea vem depois.

Perto do rio Mondego há uma casa feita de palavras. Um castor velho ocupa-se a suprimir-lhe as excrescências.

Um texto habitado por fantasmas. Reconhece-se pelo óxido de ferro.

O concon é um peixe-crustáceo. A sua captura é um jogo de sedução. Devolve-nos o passado e fere o sabor. Não deveria ter nome.

Uma vontade de chorar quando o corpo se excede. A morada torna-se habitável. Perto do júbilo.

A chuva desagrega a cidade. É preciso olhar de novo. Passado o engano, abrigo-me no escuro.

Ao guardião, no seu elemento, entrego as palavras. Todas as palavras. Próximas do limite.
Falamos sobre limites. Sobre elementos. Sobre repetições.
Amanhã, o guardião cumprirá, renovando, o seu elemento. Partirei em busca de outras águas. E a eterna dúvida será a nossa comum perturbação. E agora, na noite, pode esboçar-se o risco infinito da morte. À superfície das águas.

Um corpo tem as palavras exactas. E não se diz.

Fundo. Uma lágrima abre fundo um sulco. Por vezes invisível. Por vezes descoberto tarde de mais.

Amanhã não morro. Prometo.

O meu guardião e eu: partilhamos a mesma cela.

A água a rasar os pés. A beijar a casa.

Queimo oxigénio para separar as palavras. Afastar umas das outras até ao nascer da luz.
Queimo pontes e de olhos vendados atravesso rios.

A viagem é caminhar para a perda. No regresso solto as escamas. O cheiro de perto do fim.

E o meu guardião confirma: decomposição molecular dos sentidos. Insubstância da gramática.

A casa de passar as tardes não tem raízes. Mas sobram-lhe galhos. Em certas horas do dia são-lhe acrescentados dedos. Pequenos artefactos quase inúteis.

Breves fracassos. Nunca as promessas se cumprem.

Na calçada do general o tempo escorre na pressa de apagar os passos perdidos.

O meu caminho de sempre é só meu. Cheio de lugares comuns – mas desabitados. Ainda.

Escrevo sobre as vossas palavras, os modos de se mostrarem ao mundo – com outras palavras. Subjugadas, as minhas e as vossas, à vertigem dos desencontros. O sorriso do meu guardião, como sempre, impenetrável.

Não devo nomear os rios. Nem as sombras.

As palavras servem-se frias – como os corpos antigos.

A palavra fere o flanco. Um modo de dizer – silenciar.

Duro, duro é o dizer. Pesadelos de mandíbulas. Nós estilhaçados.

O meu guardião conta os dias. Assegura a compactação dos micro-organismos. Confirma a declinação da luz. Já disse: habitamos a mesma cela.

Uma poeira de adiamentos sobre os móveis na casa de passar as tardes. Observo os traçados, pouco nítidos, de algumas deambulações erráticas. Uma arqueologia perigosa. Há sempre à espreita um alçapão falso.

Gosto de enigmas. Troco-os com o meu guardião. Especialmente de noite, à luz de um cigarro.


(nome dado pelo meu guardião a este conjunto de palavras escritas entre 24 de outubro e hoje: Na Casa de Passar as Tardes. Continuaremos, depreendi do seu sorriso)

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