sábado, setembro 25, 2004
domingo, julho 18, 2004
Foi depois da morte da engenheira Maria de Lourdes Pintasilgo
Depois de me ter enojado com hipocrisias, mentiras, injúrias e memórias recauchutadas - antes e agora.
(para a Isabel Frazão)
Chamavas-te isabel e em frazoa
te efeminávamos o apelido
talvez para te compensar do homem
que se foi e te deixou viúva
alegre e sempre capaz de mais
um esforço pelo teu filho
pelo partido não importa quem
sabiamos-te a tristeza de dentro
e um dia os teus olhos brilharam
mais quando o nome da engenheira
foi aceite pelos teus camaradas
como candidata à presidência tu
sorriste abriste os olhos e as mãos
e falaste embora todos pô-la lá
e depois mais tarde os teus camaradas
disseram que afinal a engenheira
tinha sido da câmara corporativa
e era lésbica e era da opus dei
e isso fechou-te a boca e a cor
e isso deu-te o cancro da traição
e quando todo o teu corpo amoleceu
irremediavelmente o teu filho
correu a dizer ao partido
eu vou crescer e vão pagar-mas.
(d'A Realidade Inclinada, Lisboa, Averno, 2003: 84)
quinta-feira, julho 01, 2004
quinta-feira, abril 01, 2004
sexta-feira, março 26, 2004
domingo, março 21, 2004
quarta-feira, março 10, 2004
terça-feira, março 09, 2004
segunda-feira, março 08, 2004
sexta-feira, março 05, 2004
segunda-feira, março 01, 2004
sábado, fevereiro 28, 2004
Encosto-me às paredes com umas quantas pequenas verdades nas mãos cerradas. Não ter as outras já não dói, apenas cansa. O corpo é um rio confundido entre a montanha e o mar. O meu dizer não sustém o mundo. Nem ele as minhas palavras.
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Caixa de comentários: Falas.
quinta-feira, fevereiro 12, 2004
sábado, fevereiro 07, 2004
quarta-feira, fevereiro 04, 2004
quinta-feira, janeiro 29, 2004
terça-feira, janeiro 27, 2004
segunda-feira, janeiro 26, 2004
Um músculo por vezes fraqueja. Retorce-se. E depois desiste. Nem mesmo um sorriso largo o salva.
O meu guardião fala-me de limiares. Por exemplo: os limites da sombra do muro no lajedo.
Um rio deve ser rigoroso. Ter peixes e plantas e pedras e areias. Bombear água sem contrariar a Lua. E deixar-se morrer no mar.
Os rios subterrâneos estão silenciosos. Acumula-se lixo na calçada do general. Na casa de passar as tardes insinua-se uma dor. Como um gás inodoro e letal.
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Nova caixa de comentários: HaloScan (Falas).
domingo, janeiro 25, 2004
Certos movimentos dos rios subterrâneos fazem da casa de passar as tardes uma ilha. Mais propriamente: um vulcão numa ilha.
O meu guardião está vigilante. Sente a presença de um intruso. Pelo sim, pelo não, preparo os copos de cristal.
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Nova caixa de comentários: HaloScan (Falas).
sábado, janeiro 24, 2004
sexta-feira, janeiro 23, 2004
quinta-feira, janeiro 22, 2004
quarta-feira, janeiro 21, 2004
terça-feira, janeiro 20, 2004
segunda-feira, janeiro 19, 2004
domingo, janeiro 18, 2004
sábado, janeiro 17, 2004
sexta-feira, janeiro 16, 2004
terça-feira, janeiro 13, 2004
domingo, janeiro 11, 2004
CITAC - Aventuras Extraordinárias do Príncipe e do Castor
Dias 14, 15, 16
21:30 - Teatro Académico Gil Vicente - Coimbra
- Não é por falta de histórias, de história, que esta história começa. É pelo tempo que transborda para fora dos nossos corpos...
- ou dos corpos que sobraram do nosso tempo
- das palavras que enrolaram o tempo no meu corpo...
- e por isso a tua pele na minha pele...
- diluindo-se uma na outra...
- envolvendo outros corpos...
- cegando outros olhos...
- afinal é com os nossos corpos que esta história se faz...
- com os fantasmas dos nossos corpos...
- com o que resta dos nossos corpos...
- e das nossas palavras...
Um homem que em toda a sua vida quis ser príncipe.
Uma mulher que viveu toda a sua vida como um castor.
Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir em cena?
Talvez. E também umas quantas conversas «de pessoas
que lançam à cara umas das outras, coisas que têm a dizer».
Encenação | Tiago de Faria
Assistente de encenação | Fernando Silva (estágio final do curso de Estudos Teatrais da Universidade de Évora)
Direcção de texto | Carlos Alberto Machado
Concepção de texto | Ana Fernandes | Carlos Alberto Machado | Fernando Silva |Tiago
Lança | Sílvia das Fadas
Interpretação | Ana Fernandes | Fernando Silva | Luís Rodeiro | Maria Inês Coroa | Sílvia das Fadas
Desenho de Luz | Mafalda Oliveira
Banda sonora | Bruno Matias | Francisco Frazão | Hugo Gama
Cenografia | Tiago Lança
Figurinos | Ana Manaia
Concepção Gráfica | huella
Produção CITAC 2003
Agradecimento de participação na elaboração de texto | Francisco Frazão | Jorge Correia | Niama
CITAC - EVENTO SARTRE/BEAUVOIR
PROGRAMA
Teatro Académico Gil Vicente - COIMBRA
Dia 12
09:30 - Abertura das exposições
17:30 - Abertura Oficial do Evento (Depoimentos dos citaquianos envolvidos no evento sartre e Beauvoir)
18:00 - Conversas sobre Sartre e Beauvoir com Tito Cardoso e Cunha, Pedro Calheiros, e Cecília Monteiro
22:00 Projecção do documentário “On a raison de se révolter”
Dia 13
09:30 - Abertura das exposições
18:00 - Projecção do documentário “Sartre par lui même”, 1.ª parte
22:00 - Concerto – apresentação da banda sonora do espectáculo “Aventuras Extraordinárias do Príncipe e do Castor”
Dia 14
09:30 - Abertura das exposições
18:00 - Conversas em torno de Simone de Beauvoir, com Zília Osório de Castro, Maria João Frazão
21:30 - Estreia do espectáculo “Aventuras Extraordinárias do Príncipe e do Castor”
Dia 15
09:30 - Abertura das exposições
18:00 - Projecção do documentário “Sartre par lui même - 2.ª parte”
21:30 - Aventuras Extraordinárias do Príncipe e do Castor
Dia 16
09:30 - Abertura das exposições
18:00 - Conversas sobre Sartre: António Pedro Pita (Sartre o Intelectual e a Situação), José Oliveira Barata (Sartre e o Teatro)
21:30 - Aventuras Extraordinárias do Príncipe e do Castor
sábado, janeiro 10, 2004
sexta-feira, janeiro 09, 2004
quinta-feira, janeiro 08, 2004
quarta-feira, janeiro 07, 2004
terça-feira, janeiro 06, 2004
segunda-feira, janeiro 05, 2004
domingo, janeiro 04, 2004
Afectos (37)- Adeus, amigo
«O jornalista e poeta Eduardo Guerra Carneiro faleceu hoje, com 61 anos, tendo o seu corpo sido encontrado sem vida junto à casa onde residia sozinho no Bairro Alto, em Lisboa, segundo fonte médica.
A mesma fonte adiantou que Eduardo Guerra Carneiro faleceu vítima de queda de altura elevada, do andar em que residia para o patamar do prédio.
A autópsia, a realizar na segunda-feira no Instituto de Medicina Legal, vai ajudar a esclarecer as circunstâncias da morte de Eduardo Carneiro.
Eduardo Guerra Carneiro nasceu em Chaves em 1942 e exerceu a sua profissão nos jornais "República", "Primeiro de Janeiro", "O Século" e "Diário Popular" e na revista "TV Guia", tendo também publicado diversos livros de crónica e poesia.
O seu trajecto literário, inicialmente no surrealismo e mais tarde no lirismo amoroso e neo-romantismo, teve início com o lançamento do livro de poesia "O Perfil da Estátua" em 1961 e prosseguiu com "Corpo Terra", "Isto Anda Tudo Ligado", "Como Quem Não Quer a Coisa", " Assim que se Faz a História" ou "Contra a Corrente".
"Lixo", "Profissão de Fé", "Algumas Palavras", "Dama de Copas" e "A Noiva das Astúrias", editado em 2001, são outros dos títulos de poesia que publicou, e aos quais se juntam volumes de crónicas como "O Revólver do Repórter" e "Outras Fitas".
De acordo com o também jornalista e escritor Baptista-Bastos, "morreu um grande poeta e foi o país que o matou", pois em Portugal assiste-se "ao desprezo dos poetas, dos prosadores", existindo "vários jornalistas e escritores na faixa da miséria enquanto directores de jornais e editores continuam a enriquecer".»
Isto está na folha do sor zé manel furnandes on-line de hoje.
Morreu Eduardo Guerra Carneiro, poeta e jornalista
ANTÓNIO VALDEMAR
«Eduardo Guerra Carneiro, poeta e jornalista profissional, durante mais de trinta anos afirmou, de forma exuberante, a singularidade da sua presença na vida cultural e nas tertúlias boémias da noite sempre inacabada de Lisboa.
A morte surpreendeu-o aos 61 anos. Foi encontrado sem vida junto à casa onde morava sozinho na Travessa do Abarracamento de Peniche, no Bairro Alto, no mesmo prédio onde também residiu mestre Agostinho da Silva.
Eduardo Guerra Carneiro nasceu em Chaves em 1942. Era filho de Edgar Carneiro, professor de História e de Filosofia e também poeta e escritor. Frequentou as Faculdades de Letras do Porto e de Lisboa, sem concluir qualquer licenciatura. Atraído pelo jornalismo trabalhou desde o final da década de 60 nas redacções do República, Primeiro de Janeiro, Cinéfilo, O Século, Diário Popular, Portugal Hoje e, por último, na revista TV Guia.
Era um colega exemplar e um profissional de grande probidade. Na contínua dispersão da sua vida e do seu espírito fez crónicas e reportagens notáveis. Por duas vezes foi distinguido com o Prémio Júlio César Machado destinado aos melhores textos sobre Lisboa na Imprensa diária.
O trajecto literário de Eduardo Guerra Carneiro principiou no surrealismo e mais tarde derivou para um lirismo neo-romântico. Estreou-se com Perfil da Estátua em 1961, e prosseguiu com Corpo Terra, Isto Anda Tudo Ligado, Como Quem Não Quer a Coisa, É Assim que se Faz a História e Contra a Corrente. Outros títulos de poesia que publicou: Lixo, Profissão de Fé, Algumas Palavras, Dama de Copas e A Noiva das Astúrias. Também se destacam os volumes de crónicas O Revólver do Repórter e Outras Fitas.
O funeral de Eduardo Guerra Carneiro efectua-se em dia, hora e local a designar, depois de cumpridas as habituais formalidades no Instituto de Medicina Legal.»
Isto, no DN de hoje.
I
A dor é isto: um vazio. E sentir
depois um vazio maior – esperar
a morte. Escrevo, assim, convicto,
num estado semelhante ao pó,
mas em lava ardente procuro
a maneira ainda de incendiar.
A morte é isto? Um vazio? Mas
escrevo para contar aos outros
deste sentimento estranho. Ao espelho
vejo ressentimento, usura, uso
e abuso do tempo que me deram.
E ardo na paixão gelada, sem morrer.
Espero por ti, seguro que já sei
nada mais de ti esperar.
do seu livro Profissão de Fé, Lisboa, Quetzal, 1990: 33
sábado, janeiro 03, 2004
Noite. Água. Cinza. E cinco velas escarlates a ludibriarem os sentidos.
Um de nós disse: “Um cigarro para apagar a noite.” Um de nós disse: “Um cigarro para acender a noite.” Um de nós disse-o. Tão perto de o poder dizer.
No saguão fenecem flores silvestres. O meu guardião entristece.
O meu guardião está indeciso entre uma palavra – ou certas palavras – e um corpo. Não tem – não há – nem medida nem balança.
Terão peixes os nossos rios? – pergunto. O meu guardião guarda silêncio – nem sempre sinal de sabedoria.
Nos rios subterrâneos não correm barcas. Nenhuma se despedaçará nos baixios da vida.
quinta-feira, janeiro 01, 2004
Na casa de passar as tardes
Desço a calçada do general. Poupo palavras. Regresso. Confirmo a morada. A casa de passar as tardes. O meu guardião consome oxigénio. Saúdo-o. Na calçada começa a rolar uma esfera de cinza. A náusea vem depois.
Longe, junto a um rio, há uma casa feita de palavras. Um castor velho ocupa-se a suprimir-lhe as excrescências.
Um texto habitado por fantasmas. Reconhece-se pelo óxido de ferro.
O concon é um peixe-crustáceo. A sua captura é um jogo de sedução. Devolve-nos o passado e fere o sabor. Não deveria ter nome.
Uma vontade de chorar quando o corpo se excede. A morada torna-se habitável. Perto do júbilo.
A chuva desagrega a cidade. É preciso olhar de novo. Passado o engano, abrigo-me no escuro.
Ao meu guardião, no seu elemento, entrego as palavras. Todas as palavras. Próximas do limite.
Falamos sobre limites. Sobre elementos. Sobre repetições.
Amanhã, o meu guardião cumprirá, renovando, o seu elemento. Partirei em busca de outras águas. E a eterna dúvida será a nossa comum perturbação. E agora, na noite, pode esboçar-se o risco infinito da morte. À superfície das águas.
Um corpo tem as palavras exactas. E não se diz.
Fundo. Uma lágrima abre fundo um sulco. Por vezes invisível. Por vezes descoberto tarde de mais.
Amanhã não morro. Prometo.
O meu guardião e eu: partilhamos a mesma cela.
A água a rasar os pés. A beijar a casa.
Queimo oxigénio para separar as palavras. Afastar umas das outras até ao nascer da luz.
Queimo pontes e de olhos vendados atravesso rios.
A viagem é caminhar para a perda. No regresso solto as escamas. O cheiro de perto do fim.
E o meu guardião confirma: decomposição molecular dos sentidos. Insubstância da gramática.
A casa de passar as tardes não tem raízes. Mas sobram-lhe galhos. Em certas horas do dia são-lhe acrescentados dedos. Pequenos artefactos quase inúteis.
Breves fracassos. Nunca as promessas se cumprem.
Na calçada do general o tempo escorre na pressa de apagar os passos perdidos.
O meu caminho de sempre é só meu. Cheio de lugares comuns – mas desabitados. Ainda.
Escrevo sobre outras palavras, os modos de se mostrarem ao mundo – com outras palavras. Subjugadas, as minhas e as vossas, à vertigem dos desencontros. O sorriso do meu guardião, como sempre, impenetrável.
Não devo nomear os rios. Nem as sombras.
As palavras servem-se frias – como os corpos antigos.
A palavra fere o flanco. Um modo de dizer – silenciar.
Duro, duro é o dizer. Pesadelos de mandíbulas. Nós estilhaçados.
O meu guardião conta os dias. Assegura a compactação dos micro-organismos. Confirma a declinação da luz. Já disse: habitamos a mesma cela.
Uma poeira de adiamentos sobre os móveis na casa de passar as tardes. Observo os traçados, pouco nítidos, de algumas deambulações erráticas. Uma arqueologia perigosa. Há sempre à espreita um alçapão falso.
Gosto de enigmas. Troco-os com o meu guardião. Especialmente de noite, à luz de um cigarro.
O tempo distende-se. Compacta-se. Assim passa os dias o meu guardião. Com os fios do tempo a tecer vazios.
Junto à casa de passar as tardes há outras casas. Enxames de vozes. Retinir de vidros. Silenciam-se ao chegar da noite.
Hoje trouxe o cansaço das grandes planícies. E cheiros de manjerona e alecrim. Foi preciso um rio para me recompor.
O meu guardião mede as palavras do dia. Entre os espaços em branco adormece. À noite finge cansaço. E eu finjo acreditar.
Sob a casa de passar as tardes nasceu um rio de lava. E nos céus um alarme de mudança.
Há segredos nos textos. Textos secretos, contraria o meu guardião. Controvérsia antiga.
Um corpo dói, quando se desperdiça. Doença das palavras, chama-lhe o meu guardião.
Todos os dias o meu guardião sacode o seu pó de ouro.
Digo: não sei. E depois falam-me com palavras frouxas.
Profecia: a menor distância entre dois rios será uma palavra exacta.
O meu guardião perdeu o seu caderno diário azul. Folhas imaculadamente em branco. Uma vida perdida. Aconchego-me mais no escuro. Respeito a sua dor.
Regresso de outra casa. Tal como a nossa, erguida com palavras. Tal como a nossa, a refazer fundações. Massa feita de corpos. A morte entre as fissuras.
Mordo uma laranja ao fim da tarde. E mordo. O sabor é sempre o mesmo. É mentira.
A marca na parede. O canto obscuro do quarto. Um não a ricochetear nas paredes. O crânio a explodir.
Tapa-me. Tenho frio. Sempre o mesmo frio. Tapa-me. Tapa-me. Tenho frio.
O rio de lava ascende à calçada e cobre-a de cinza. A casa desloca-se. Como o mundo. Perto da foz, agulhas de gelo.
Um xilofone com teclas de água. O meu guardião à procura de música.
Subtraí mais uma palavra ao mundo. Uma só. Inominável pedaço de carne. E ainda sangra.
Hoje é dia do teu aniversário, diz o meu guardião. Como sempre, acredito nele.
Uma velha, numa casa só com noites, decide o doloroso começo do fim.
Cal. Cal a abrir noites.
Roubei (quase, quase): tenho um dia para a troca. Uma violência num corpo em falta.
A calçada do general continua triste – mas agora tem luzes falsas penduradas em arcos de ferro. O meu guardião rumina pensamentos de sabotagem.
O meu guardião olha há várias horas para uma tampa de caneta. É de temer o pior.
Um poeta procura decifrar um corpo. De mãos nuas e ainda com cinza nos olhos.
Anoitece na casa de passar as tardes. Colamo-nos às paredes e esperamos pelo primeiro grito.
Perscruto sombras no negro das paredes. Antigamente, vertiam copiosas lágrimas.
Acendo um livro – mais um. As cinzas correm para o rio mais próximo.
Em tempos, o meu guardião aprendeu a arte de enxertar rios. Agora é a minha vez.
Onde guardaste a memória? O meu guardião é um ser infinitamente paciente.
Não mordas as palavras por dentro, ataca o meu guardião, o centro é demasiado amargo. Eu sei, mas agora não posso parar.
Na China fabricam cadernos de capa vermelha com uma rosa, vermelha, em baixo relevo.
Falta-me um rio de sombras. E a ameaça de uma tempestade. Recomeçar tudo.
Um corpo vazio fere. A escama das palavras fere – a ordem dos factores não é arbitrária.
Ou o contrário: um turbilhão de palavras num corpo sem ar. Ou o contrário.
No alto da cidade deixei palavras em equilíbrio precário. Em baixo, o rio – entre rios.
Na casa de passar as tardes, especula-se: com quantas palavras se faz um rio?
Não me decido: é casa ou prisão? Ou: uma não existe sem a outra? Ou: é tudo uma questão de pronúncia?
O meu guardião: uma casa faz-se de firmezas. Eu: com quantas, exactamente?
De noite os nomes resistem. Por isso inventamos sombras.
Cresceu mais um rio subterrâneo sob a casa de passar as tardes. Sangue das noites.
Não é possível lavar um rio, lembra-me o meu guardião.
Andamos, eu e o meu guardião, confundidos com os rios. Voláteis. De humores. Vagos e fugidios.
A calçada do general está vestida de luzes de antes das cinzas.
Por penúria de matéria refaço mais uma vez o inventário.
Também conto palavras. Em cada contagem uma perda. O dilema é: emudecer ou arriscar.
A pergunta já não é: qual será a última palavra? Mas: onde estará?
Há um tempo para tudo, dizem. E depois, sempre, o embaraço de um gesto fora de tempo.
O meu guardião não sairá nunca da casa de passar as tardes. Nem mesmo quando a sua cor e a das paredes se confundirem.
Nem um som. Nem um gesto. Noite densa.
Passamos muito tempo a inventar perguntas. Ontem foi a minha vez.
Se desistir não chego lá. Se perseverar também não.
Vinho tinto aquecido numa rocha ao rubro. Um acorde de viola de arco. O sexo húmido.
Quantas vezes subiste e desceste a calçada do general? Faço esta pergunta inutilmente – se tivesse resposta também ela não guardaria a chave do enigma. Partiste. Eis um acontecimento tão indeclinável como um rio preso ao seu destino. E palavras a mais.
A casa de passar as tardes é frágil. Sabê-lo, fortalece-a.
Uma partícula de dúvida aniquila um gesto. E a dúvida é: como ter a certeza da decisão de um gesto?
Para um lado ou para o outro? Se alguém sabe a resposta, não a partilha. O meu guardião rasga papéis inúteis.
Sob a casa de passar as tardes, um rio (mais um?) reduz as margens. Na calçada do general, esvai-se a luz.
O meu guardião pede-me para lhe contar uma história. “Era uma vez um rio...”
Meaume, o gravador, morreu em Utrecht, aos 50 anos, nos braços de Marie Aidelle.
Como fazer uma pergunta com uma palavra cindida?
A água dos rios subterrâneos agita-se. No firmamento, uma lua nunca vista.
Lembro-me: sugámos laranjas azuis. Sob uma tempestade. Não me lembro se rimos.
Nas costas, no exacto instante de um beijo, o calor do sol de um verão tardio.
Na calçada do general, as casas estão ligadas aos seus rios por longas linhas finas e invisíveis.
Uma falha é sempre a última falha. De umas vezes, morre-se. De outras, não.
Os rios subterrâneos conjugam-se em labirinto. A foz como enigma comum.
O meu guardião quer abrir um buraco no chão e sorver um rio.
Um corpo enrijece com a secura das palavras.
O meu guardião inventa um sorriso para findar a noite.
Para trespassar corpos, as palavras vomitam o mundo de trás para a frente.
O tempo dissolve os ângulos da casa de passar as tardes. As paredes cobertas de verdete exsudem em espasmos lentos.
Quando estão serenos, os rios acomodam-se num sentido comum – arriscam-se a percorrer juntos todo o caminho da morte.
A quietude já não pertencerá a este tempo. São inúteis todas as palavras. Todos os corpos.
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