quinta-feira, janeiro 01, 2004

Na casa de passar as tardes


Desço a calçada do general. Poupo palavras. Regresso. Confirmo a morada. A casa de passar as tardes. O meu guardião consome oxigénio. Saúdo-o. Na calçada começa a rolar uma esfera de cinza. A náusea vem depois.

Longe, junto a um rio, há uma casa feita de palavras. Um castor velho ocupa-se a suprimir-lhe as excrescências.

Um texto habitado por fantasmas. Reconhece-se pelo óxido de ferro.

O concon é um peixe-crustáceo. A sua captura é um jogo de sedução. Devolve-nos o passado e fere o sabor. Não deveria ter nome.

Uma vontade de chorar quando o corpo se excede. A morada torna-se habitável. Perto do júbilo.

A chuva desagrega a cidade. É preciso olhar de novo. Passado o engano, abrigo-me no escuro.

Ao meu guardião, no seu elemento, entrego as palavras. Todas as palavras. Próximas do limite.

Falamos sobre limites. Sobre elementos. Sobre repetições.

Amanhã, o meu guardião cumprirá, renovando, o seu elemento. Partirei em busca de outras águas. E a eterna dúvida será a nossa comum perturbação. E agora, na noite, pode esboçar-se o risco infinito da morte. À superfície das águas.

Um corpo tem as palavras exactas. E não se diz.

Fundo. Uma lágrima abre fundo um sulco. Por vezes invisível. Por vezes descoberto tarde de mais.

Amanhã não morro. Prometo.



O meu guardião e eu: partilhamos a mesma cela.

A água a rasar os pés. A beijar a casa.

Queimo oxigénio para separar as palavras. Afastar umas das outras até ao nascer da luz.
Queimo pontes e de olhos vendados atravesso rios.
A viagem é caminhar para a perda. No regresso solto as escamas. O cheiro de perto do fim.

E o meu guardião confirma: decomposição molecular dos sentidos. Insubstância da gramática.

A casa de passar as tardes não tem raízes. Mas sobram-lhe galhos. Em certas horas do dia são-lhe acrescentados dedos. Pequenos artefactos quase inúteis.

Breves fracassos. Nunca as promessas se cumprem.

Na calçada do general o tempo escorre na pressa de apagar os passos perdidos.

O meu caminho de sempre é só meu. Cheio de lugares comuns – mas desabitados. Ainda.

Escrevo sobre outras palavras, os modos de se mostrarem ao mundo – com outras palavras. Subjugadas, as minhas e as vossas, à vertigem dos desencontros. O sorriso do meu guardião, como sempre, impenetrável.

Não devo nomear os rios. Nem as sombras.

As palavras servem-se frias – como os corpos antigos.

A palavra fere o flanco. Um modo de dizer – silenciar.

Duro, duro é o dizer. Pesadelos de mandíbulas. Nós estilhaçados.

O meu guardião conta os dias. Assegura a compactação dos micro-organismos. Confirma a declinação da luz. Já disse: habitamos a mesma cela.

Uma poeira de adiamentos sobre os móveis na casa de passar as tardes. Observo os traçados, pouco nítidos, de algumas deambulações erráticas. Uma arqueologia perigosa. Há sempre à espreita um alçapão falso.

Gosto de enigmas. Troco-os com o meu guardião. Especialmente de noite, à luz de um cigarro.

O tempo distende-se. Compacta-se. Assim passa os dias o meu guardião. Com os fios do tempo a tecer vazios.

Junto à casa de passar as tardes há outras casas. Enxames de vozes. Retinir de vidros. Silenciam-se ao chegar da noite.

Hoje trouxe o cansaço das grandes planícies. E cheiros de manjerona e alecrim. Foi preciso um rio para me recompor.

O meu guardião mede as palavras do dia. Entre os espaços em branco adormece. À noite finge cansaço. E eu finjo acreditar.

Sob a casa de passar as tardes nasceu um rio de lava. E nos céus um alarme de mudança.

Há segredos nos textos. Textos secretos, contraria o meu guardião. Controvérsia antiga.

Um corpo dói, quando se desperdiça. Doença das palavras, chama-lhe o meu guardião.

Todos os dias o meu guardião sacode o seu pó de ouro.

Digo: não sei. E depois falam-me com palavras frouxas.

Profecia: a menor distância entre dois rios será uma palavra exacta.

O meu guardião perdeu o seu caderno diário azul. Folhas imaculadamente em branco. Uma vida perdida. Aconchego-me mais no escuro. Respeito a sua dor.

Regresso de outra casa. Tal como a nossa, erguida com palavras. Tal como a nossa, a refazer fundações. Massa feita de corpos. A morte entre as fissuras.

Mordo uma laranja ao fim da tarde. E mordo. O sabor é sempre o mesmo. É mentira.

A marca na parede. O canto obscuro do quarto. Um não a ricochetear nas paredes. O crânio a explodir.

Tapa-me. Tenho frio. Sempre o mesmo frio. Tapa-me. Tapa-me. Tenho frio.

O rio de lava ascende à calçada e cobre-a de cinza. A casa desloca-se. Como o mundo. Perto da foz, agulhas de gelo.

Um xilofone com teclas de água. O meu guardião à procura de música.

Subtraí mais uma palavra ao mundo. Uma só. Inominável pedaço de carne. E ainda sangra.

Hoje é dia do teu aniversário, diz o meu guardião. Como sempre, acredito nele.

Uma velha, numa casa só com noites, decide o doloroso começo do fim.

Cal. Cal a abrir noites.

Roubei (quase, quase): tenho um dia para a troca. Uma violência num corpo em falta.

A calçada do general continua triste – mas agora tem luzes falsas penduradas em arcos de ferro. O meu guardião rumina pensamentos de sabotagem.

O meu guardião olha há várias horas para uma tampa de caneta. É de temer o pior.

Um poeta procura decifrar um corpo. De mãos nuas e ainda com cinza nos olhos.

Anoitece na casa de passar as tardes. Colamo-nos às paredes e esperamos pelo primeiro grito.

Perscruto sombras no negro das paredes. Antigamente, vertiam copiosas lágrimas.

Acendo um livro – mais um. As cinzas correm para o rio mais próximo.

Em tempos, o meu guardião aprendeu a arte de enxertar rios. Agora é a minha vez.

Onde guardaste a memória? O meu guardião é um ser infinitamente paciente.

Não mordas as palavras por dentro, ataca o meu guardião, o centro é demasiado amargo. Eu sei, mas agora não posso parar.

Na China fabricam cadernos de capa vermelha com uma rosa, vermelha, em baixo relevo.

Falta-me um rio de sombras. E a ameaça de uma tempestade. Recomeçar tudo.

Um corpo vazio fere. A escama das palavras fere – a ordem dos factores não é arbitrária.

Ou o contrário: um turbilhão de palavras num corpo sem ar. Ou o contrário.

No alto da cidade deixei palavras em equilíbrio precário. Em baixo, o rio – entre rios.

Na casa de passar as tardes, especula-se: com quantas palavras se faz um rio?

Não me decido: é casa ou prisão? Ou: uma não existe sem a outra? Ou: é tudo uma questão de pronúncia?

O meu guardião: uma casa faz-se de firmezas. Eu: com quantas, exactamente?

De noite os nomes resistem. Por isso inventamos sombras.

Cresceu mais um rio subterrâneo sob a casa de passar as tardes. Sangue das noites.

Não é possível lavar um rio, lembra-me o meu guardião.

Andamos, eu e o meu guardião, confundidos com os rios. Voláteis. De humores. Vagos e fugidios.

A calçada do general está vestida de luzes de antes das cinzas.

Por penúria de matéria refaço mais uma vez o inventário.

Também conto palavras. Em cada contagem uma perda. O dilema é: emudecer ou arriscar.

A pergunta já não é: qual será a última palavra? Mas: onde estará?

Há um tempo para tudo, dizem. E depois, sempre, o embaraço de um gesto fora de tempo.

O meu guardião não sairá nunca da casa de passar as tardes. Nem mesmo quando a sua cor e a das paredes se confundirem.

Nem um som. Nem um gesto. Noite densa.

Passamos muito tempo a inventar perguntas. Ontem foi a minha vez.

Se desistir não chego lá. Se perseverar também não.

Vinho tinto aquecido numa rocha ao rubro. Um acorde de viola de arco. O sexo húmido.

Quantas vezes subiste e desceste a calçada do general? Faço esta pergunta inutilmente – se tivesse resposta também ela não guardaria a chave do enigma. Partiste. Eis um acontecimento tão indeclinável como um rio preso ao seu destino. E palavras a mais.

A casa de passar as tardes é frágil. Sabê-lo, fortalece-a.

Uma partícula de dúvida aniquila um gesto. E a dúvida é: como ter a certeza da decisão de um gesto?

Para um lado ou para o outro? Se alguém sabe a resposta, não a partilha. O meu guardião rasga papéis inúteis.

Sob a casa de passar as tardes, um rio (mais um?) reduz as margens. Na calçada do general, esvai-se a luz.

O meu guardião pede-me para lhe contar uma história. “Era uma vez um rio...”

Meaume, o gravador, morreu em Utrecht, aos 50 anos, nos braços de Marie Aidelle.

Como fazer uma pergunta com uma palavra cindida?

A água dos rios subterrâneos agita-se. No firmamento, uma lua nunca vista.

Lembro-me: sugámos laranjas azuis. Sob uma tempestade. Não me lembro se rimos.

Nas costas, no exacto instante de um beijo, o calor do sol de um verão tardio.

Na calçada do general, as casas estão ligadas aos seus rios por longas linhas finas e invisíveis.

Uma falha é sempre a última falha. De umas vezes, morre-se. De outras, não.

Os rios subterrâneos conjugam-se em labirinto. A foz como enigma comum.

O meu guardião quer abrir um buraco no chão e sorver um rio.

Um corpo enrijece com a secura das palavras.

O meu guardião inventa um sorriso para findar a noite.

Para trespassar corpos, as palavras vomitam o mundo de trás para a frente.

O tempo dissolve os ângulos da casa de passar as tardes. As paredes cobertas de verdete exsudem em espasmos lentos.

Quando estão serenos, os rios acomodam-se num sentido comum – arriscam-se a percorrer juntos todo o caminho da morte.

A quietude já não pertencerá a este tempo. São inúteis todas as palavras. Todos os corpos.

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