quinta-feira, janeiro 29, 2004


As ondas em altas vagas levantadas pelos corpos submergem a casa de passar as tardes.



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terça-feira, janeiro 27, 2004


Sob as pedras negras jazem palavras. Possuem a intensidade da luz de uma estrela morta há milhões de anos.



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No meio do Atlântico há uma casa gémea da casa de passar as tardes. Perto de um vulcão.



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segunda-feira, janeiro 26, 2004


Um músculo por vezes fraqueja. Retorce-se. E depois desiste. Nem mesmo um sorriso largo o salva.


O meu guardião fala-me de limiares. Por exemplo: os limites da sombra do muro no lajedo.



Um rio deve ser rigoroso. Ter peixes e plantas e pedras e areias. Bombear água sem contrariar a Lua. E deixar-se morrer no mar.

Os rios subterrâneos estão silenciosos. Acumula-se lixo na calçada do general. Na casa de passar as tardes insinua-se uma dor. Como um gás inodoro e letal.


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Inventário: um punho cresceu até ao tamanho de um braço. E invadiu-me um sonho.



Um corpo ondula em imagens. Projecta-se no escuro da parede.

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domingo, janeiro 25, 2004


Certos movimentos dos rios subterrâneos fazem da casa de passar as tardes uma ilha. Mais propriamente: um vulcão numa ilha.



O meu guardião está vigilante. Sente a presença de um intruso. Pelo sim, pelo não, preparo os copos de cristal.
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sábado, janeiro 24, 2004


O meu guardião lê sempre o mesmo livro. Como se o escrevesse.



Leves sulcos na dureza da pele. Talvez palavras.

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sexta-feira, janeiro 23, 2004




A pele suave e tépida de um corpo. A pele gretada e áspera de outro corpo. A pele. Sempre resistente à escrita.



Uma língua de fogo aflora a mão em arco.
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quinta-feira, janeiro 22, 2004


Pão e laranjas alimentam a nossa noite. A água é para o repouso do dia.



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quarta-feira, janeiro 21, 2004


Deixarei um dia, nas primeiras folhas do meu caderno, a lista das minhas dívidas. As restantes folhas em branco imaculado.



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terça-feira, janeiro 20, 2004


Um homem possuído pela imagem de um corpo a oferecer-se caminha ao longo de um corredor conventual. Nas palmas das mãos flameja o óleo balsâmico dos amantes.



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segunda-feira, janeiro 19, 2004


Todos os dias ganho um dia. Todos os dias menos longe. De onde terminam as águas. E sombras.



domingo, janeiro 18, 2004




Estilhaço um copo na mão direita e danço. Depois, dormirei um sono regenerador, povoado por sonhos como se acreditasse.

sábado, janeiro 17, 2004



O meu guardião segreda-me enigmas. Depois, aconchega-se no seu canto favorito e casquina um riso matreiro.



É preciso aproveitar o tempo, diz muitas vezes o meu guardião. E assim, com charadas despropositadas, vai delapidando o tempo.



A calçada do general começa a ficar coberta de estilhaços de vidro. Como uma neve cruel. Treino a levitação.

sexta-feira, janeiro 16, 2004


Um sol tardio adia a noite. As folhas em branco cegam-me.



O meu guardião alisa a pele. Abre os poros. Alonga o corpo. Cintila. É belo.

terça-feira, janeiro 13, 2004




Textos brancos pontilhados pela energia (negra) de uma palavra. Protege-os o meu guardião.

domingo, janeiro 11, 2004


As unhas do meu guardião esculpem na parede uma forma obscura. Indecisão entre um corpo e uma palavra




CITAC - Aventuras Extraordinárias do Príncipe e do Castor


Dias 14, 15, 16
21:30 - Teatro Académico Gil Vicente - Coimbra


- Não é por falta de histórias, de história, que esta história começa. É pelo tempo que transborda para fora dos nossos corpos...
- ou dos corpos que sobraram do nosso tempo
- das palavras que enrolaram o tempo no meu corpo...
- e por isso a tua pele na minha pele...
- diluindo-se uma na outra...
- envolvendo outros corpos...
- cegando outros olhos...
- afinal é com os nossos corpos que esta história se faz...
- com os fantasmas dos nossos corpos...
- com o que resta dos nossos corpos...
- e das nossas palavras...


Um homem que em toda a sua vida quis ser príncipe.
Uma mulher que viveu toda a sua vida como um castor.
Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir em cena?
Talvez. E também umas quantas conversas «de pessoas
que lançam à cara umas das outras, coisas que têm a dizer».




Encenação | Tiago de Faria
Assistente de encenação | Fernando Silva (estágio final do curso de Estudos Teatrais da Universidade de Évora)
Direcção de texto | Carlos Alberto Machado
Concepção de texto | Ana Fernandes | Carlos Alberto Machado | Fernando Silva |Tiago
Lança | Sílvia das Fadas

Interpretação | Ana Fernandes | Fernando Silva | Luís Rodeiro | Maria Inês Coroa | Sílvia das Fadas

Desenho de Luz | Mafalda Oliveira
Banda sonora | Bruno Matias | Francisco Frazão | Hugo Gama
Cenografia | Tiago Lança
Figurinos | Ana Manaia

Concepção Gráfica | huella

Produção CITAC 2003

Agradecimento de participação na elaboração de texto | Francisco Frazão | Jorge Correia | Niama

CITAC - EVENTO SARTRE/BEAUVOIR




PROGRAMA
Teatro Académico Gil Vicente - COIMBRA

Dia 12

09:30 - Abertura das exposições
17:30 - Abertura Oficial do Evento (Depoimentos dos citaquianos envolvidos no evento sartre e Beauvoir)
18:00 - Conversas sobre Sartre e Beauvoir com Tito Cardoso e Cunha, Pedro Calheiros, e Cecília Monteiro
22:00 Projecção do documentário “On a raison de se révolter”

Dia 13

09:30
- Abertura das exposições
18:00 - Projecção do documentário “Sartre par lui même”, 1.ª parte
22:00 - Concerto – apresentação da banda sonora do espectáculo “Aventuras Extraordinárias do Príncipe e do Castor”

Dia 14

09:30 - Abertura das exposições
18:00 - Conversas em torno de Simone de Beauvoir, com Zília Osório de Castro, Maria João Frazão
21:30 - Estreia do espectáculo “Aventuras Extraordinárias do Príncipe e do Castor”

Dia 15

09:30 - Abertura das exposições
18:00 - Projecção do documentário “Sartre par lui même - 2.ª parte”
21:30 - Aventuras Extraordinárias do Príncipe e do Castor

Dia 16

09:30 - Abertura das exposições
18:00 - Conversas sobre Sartre: António Pedro Pita (Sartre o Intelectual e a Situação), José Oliveira Barata (Sartre e o Teatro)
21:30 - Aventuras Extraordinárias do Príncipe e do Castor


sábado, janeiro 10, 2004


O meu guardião ensaia caligrafia. O rebordo de cada palavra acetinado a negro-azul. Chama-lhe “écriture d’ombres.”

O chão da casa de passar as tardes oscila docemente. Como um barco em repouso sobre as águas paradas de um lago.




A descrição do mundo fracassou. Restam sinais. Indícios vagos.

sexta-feira, janeiro 09, 2004


O muro verde do saguão lançou raízes e cresce. Isola do mundo a casa de passar as tardes.



As fundações da casa de passar as tardes expandem-se lentamente até tocar a superfície dos rios subterrâneos.

O silêncio vive somente nos livros. Em certos livros. Aqueles onde, por um brevíssimo momento, tudo se suspende.



Qual de nós será o primeiro a ficar com os olhos baços?

quinta-feira, janeiro 08, 2004


De tempos a tempos, um inventário, como cortar as unhas.

É noite de acender mais um livro. Até à última partícula de cinza, os olhos do meu guardião hão-de brilhar.


quarta-feira, janeiro 07, 2004


Caíram águas na calçada do general. O homem velho agora brinca com um rio à volta da cintura. Mas não ri.



Uma palavra negra e brilhante como ónix esmaece lentamente frente a um espelho.



Preservar a raridade das coisas. Pudor.


terça-feira, janeiro 06, 2004


É uma palavra sarnosa, embora pequena. Nunca a pronuncies. E muito menos a escrevas – segreda-me o meu guardião.



Tenho medo de voltar a subir a calçada do general. O rasto deixado pelo homem velho ainda sangra.

Com as unhas, o meu guardião abre sulcos nas paredes húmidas. Ao longe, o som de um violoncelo barroco.



A casa de passar as tardes será algum dia engolida pelos rios subterrâneos? Guardo a dúvida só para mim.

segunda-feira, janeiro 05, 2004


A calçada do general está coberta de cinza. Um homem velho ao caminhar deixa um rasto de incerteza.



Vivemos num mundo exíguo, uma geografia de impossibilidades.


Domingo na calçada do general. Na porta da casa dos mortos, o habitual letreiro dos domingos. São sempre bem-vindos, os mortos – mesmo aos domingos.

Uma vértebra. Um músculo enrolado. Palavras encurraladas.



De dia, olhamos a luz inteira reflectida numa só linha de água. De noite, esperamos o dia.


domingo, janeiro 04, 2004

Afectos (37)- Adeus, amigo


«O jornalista e poeta Eduardo Guerra Carneiro faleceu hoje, com 61 anos, tendo o seu corpo sido encontrado sem vida junto à casa onde residia sozinho no Bairro Alto, em Lisboa, segundo fonte médica.

A mesma fonte adiantou que Eduardo Guerra Carneiro faleceu vítima de queda de altura elevada, do andar em que residia para o patamar do prédio.

A autópsia, a realizar na segunda-feira no Instituto de Medicina Legal, vai ajudar a esclarecer as circunstâncias da morte de Eduardo Carneiro.

Eduardo Guerra Carneiro nasceu em Chaves em 1942 e exerceu a sua profissão nos jornais "República", "Primeiro de Janeiro", "O Século" e "Diário Popular" e na revista "TV Guia", tendo também publicado diversos livros de crónica e poesia.

O seu trajecto literário, inicialmente no surrealismo e mais tarde no lirismo amoroso e neo-romantismo, teve início com o lançamento do livro de poesia "O Perfil da Estátua" em 1961 e prosseguiu com "Corpo Terra", "Isto Anda Tudo Ligado", "Como Quem Não Quer a Coisa", " Assim que se Faz a História" ou "Contra a Corrente".

"Lixo", "Profissão de Fé", "Algumas Palavras", "Dama de Copas" e "A Noiva das Astúrias", editado em 2001, são outros dos títulos de poesia que publicou, e aos quais se juntam volumes de crónicas como "O Revólver do Repórter" e "Outras Fitas".

De acordo com o também jornalista e escritor Baptista-Bastos, "morreu um grande poeta e foi o país que o matou", pois em Portugal assiste-se "ao desprezo dos poetas, dos prosadores", existindo "vários jornalistas e escritores na faixa da miséria enquanto directores de jornais e editores continuam a enriquecer".»

Isto está na folha do sor zé manel furnandes on-line de hoje.

Morreu Eduardo Guerra Carneiro, poeta e jornalista
ANTÓNIO VALDEMAR

«Eduardo Guerra Carneiro, poeta e jornalista profissional, durante mais de trinta anos afirmou, de forma exuberante, a singularidade da sua presença na vida cultural e nas tertúlias boémias da noite sempre inacabada de Lisboa.

A morte surpreendeu-o aos 61 anos. Foi encontrado sem vida junto à casa onde morava sozinho na Travessa do Abarracamento de Peniche, no Bairro Alto, no mesmo prédio onde também residiu mestre Agostinho da Silva.

Eduardo Guerra Carneiro nasceu em Chaves em 1942. Era filho de Edgar Carneiro, professor de História e de Filosofia e também poeta e escritor. Frequentou as Faculdades de Letras do Porto e de Lisboa, sem concluir qualquer licenciatura. Atraído pelo jornalismo trabalhou desde o final da década de 60 nas redacções do República, Primeiro de Janeiro, Cinéfilo, O Século, Diário Popular, Portugal Hoje e, por último, na revista TV Guia.

Era um colega exemplar e um profissional de grande probidade. Na contínua dispersão da sua vida e do seu espírito fez crónicas e reportagens notáveis. Por duas vezes foi distinguido com o Prémio Júlio César Machado destinado aos melhores textos sobre Lisboa na Imprensa diária.

O trajecto literário de Eduardo Guerra Carneiro principiou no surrealismo e mais tarde derivou para um lirismo neo-romântico. Estreou-se com Perfil da Estátua em 1961, e prosseguiu com Corpo Terra, Isto Anda Tudo Ligado, Como Quem Não Quer a Coisa, É Assim que se Faz a História e Contra a Corrente. Outros títulos de poesia que publicou: Lixo, Profissão de Fé, Algumas Palavras, Dama de Copas e A Noiva das Astúrias. Também se destacam os volumes de crónicas O Revólver do Repórter e Outras Fitas.

O funeral de Eduardo Guerra Carneiro efectua-se em dia, hora e local a designar, depois de cumpridas as habituais formalidades no Instituto de Medicina Legal.»



Isto, no DN de hoje.

I
A dor é isto: um vazio. E sentir
depois um vazio maior – esperar
a morte. Escrevo, assim, convicto,
num estado semelhante ao pó,
mas em lava ardente procuro
a maneira ainda de incendiar.

A morte é isto? Um vazio? Mas
escrevo para contar aos outros
deste sentimento estranho. Ao espelho
vejo ressentimento, usura, uso
e abuso do tempo que me deram.
E ardo na paixão gelada, sem morrer.

Espero por ti, seguro que já sei
nada mais de ti esperar.


do seu livro Profissão de Fé, Lisboa, Quetzal, 1990: 33

Há uma vaga rectidão nas palavras. Podem renunciar antes do assalto final.



sábado, janeiro 03, 2004


Noite. Água. Cinza. E cinco velas escarlates a ludibriarem os sentidos.

Um de nós disse: “Um cigarro para apagar a noite.” Um de nós disse: “Um cigarro para acender a noite.” Um de nós disse-o. Tão perto de o poder dizer.

No saguão fenecem flores silvestres. O meu guardião entristece.




O meu guardião está indeciso entre uma palavra – ou certas palavras – e um corpo. Não tem – não há – nem medida nem balança.

Terão peixes os nossos rios? – pergunto. O meu guardião guarda silêncio – nem sempre sinal de sabedoria.

Nos rios subterrâneos não correm barcas. Nenhuma se despedaçará nos baixios da vida.

quinta-feira, janeiro 01, 2004

Na casa de passar as tardes


Desço a calçada do general. Poupo palavras. Regresso. Confirmo a morada. A casa de passar as tardes. O meu guardião consome oxigénio. Saúdo-o. Na calçada começa a rolar uma esfera de cinza. A náusea vem depois.

Longe, junto a um rio, há uma casa feita de palavras. Um castor velho ocupa-se a suprimir-lhe as excrescências.

Um texto habitado por fantasmas. Reconhece-se pelo óxido de ferro.

O concon é um peixe-crustáceo. A sua captura é um jogo de sedução. Devolve-nos o passado e fere o sabor. Não deveria ter nome.

Uma vontade de chorar quando o corpo se excede. A morada torna-se habitável. Perto do júbilo.

A chuva desagrega a cidade. É preciso olhar de novo. Passado o engano, abrigo-me no escuro.

Ao meu guardião, no seu elemento, entrego as palavras. Todas as palavras. Próximas do limite.

Falamos sobre limites. Sobre elementos. Sobre repetições.

Amanhã, o meu guardião cumprirá, renovando, o seu elemento. Partirei em busca de outras águas. E a eterna dúvida será a nossa comum perturbação. E agora, na noite, pode esboçar-se o risco infinito da morte. À superfície das águas.

Um corpo tem as palavras exactas. E não se diz.

Fundo. Uma lágrima abre fundo um sulco. Por vezes invisível. Por vezes descoberto tarde de mais.

Amanhã não morro. Prometo.



O meu guardião e eu: partilhamos a mesma cela.

A água a rasar os pés. A beijar a casa.

Queimo oxigénio para separar as palavras. Afastar umas das outras até ao nascer da luz.
Queimo pontes e de olhos vendados atravesso rios.
A viagem é caminhar para a perda. No regresso solto as escamas. O cheiro de perto do fim.

E o meu guardião confirma: decomposição molecular dos sentidos. Insubstância da gramática.

A casa de passar as tardes não tem raízes. Mas sobram-lhe galhos. Em certas horas do dia são-lhe acrescentados dedos. Pequenos artefactos quase inúteis.

Breves fracassos. Nunca as promessas se cumprem.

Na calçada do general o tempo escorre na pressa de apagar os passos perdidos.

O meu caminho de sempre é só meu. Cheio de lugares comuns – mas desabitados. Ainda.

Escrevo sobre outras palavras, os modos de se mostrarem ao mundo – com outras palavras. Subjugadas, as minhas e as vossas, à vertigem dos desencontros. O sorriso do meu guardião, como sempre, impenetrável.

Não devo nomear os rios. Nem as sombras.

As palavras servem-se frias – como os corpos antigos.

A palavra fere o flanco. Um modo de dizer – silenciar.

Duro, duro é o dizer. Pesadelos de mandíbulas. Nós estilhaçados.

O meu guardião conta os dias. Assegura a compactação dos micro-organismos. Confirma a declinação da luz. Já disse: habitamos a mesma cela.

Uma poeira de adiamentos sobre os móveis na casa de passar as tardes. Observo os traçados, pouco nítidos, de algumas deambulações erráticas. Uma arqueologia perigosa. Há sempre à espreita um alçapão falso.

Gosto de enigmas. Troco-os com o meu guardião. Especialmente de noite, à luz de um cigarro.

O tempo distende-se. Compacta-se. Assim passa os dias o meu guardião. Com os fios do tempo a tecer vazios.

Junto à casa de passar as tardes há outras casas. Enxames de vozes. Retinir de vidros. Silenciam-se ao chegar da noite.

Hoje trouxe o cansaço das grandes planícies. E cheiros de manjerona e alecrim. Foi preciso um rio para me recompor.

O meu guardião mede as palavras do dia. Entre os espaços em branco adormece. À noite finge cansaço. E eu finjo acreditar.

Sob a casa de passar as tardes nasceu um rio de lava. E nos céus um alarme de mudança.

Há segredos nos textos. Textos secretos, contraria o meu guardião. Controvérsia antiga.

Um corpo dói, quando se desperdiça. Doença das palavras, chama-lhe o meu guardião.

Todos os dias o meu guardião sacode o seu pó de ouro.

Digo: não sei. E depois falam-me com palavras frouxas.

Profecia: a menor distância entre dois rios será uma palavra exacta.

O meu guardião perdeu o seu caderno diário azul. Folhas imaculadamente em branco. Uma vida perdida. Aconchego-me mais no escuro. Respeito a sua dor.

Regresso de outra casa. Tal como a nossa, erguida com palavras. Tal como a nossa, a refazer fundações. Massa feita de corpos. A morte entre as fissuras.

Mordo uma laranja ao fim da tarde. E mordo. O sabor é sempre o mesmo. É mentira.

A marca na parede. O canto obscuro do quarto. Um não a ricochetear nas paredes. O crânio a explodir.

Tapa-me. Tenho frio. Sempre o mesmo frio. Tapa-me. Tapa-me. Tenho frio.

O rio de lava ascende à calçada e cobre-a de cinza. A casa desloca-se. Como o mundo. Perto da foz, agulhas de gelo.

Um xilofone com teclas de água. O meu guardião à procura de música.

Subtraí mais uma palavra ao mundo. Uma só. Inominável pedaço de carne. E ainda sangra.

Hoje é dia do teu aniversário, diz o meu guardião. Como sempre, acredito nele.

Uma velha, numa casa só com noites, decide o doloroso começo do fim.

Cal. Cal a abrir noites.

Roubei (quase, quase): tenho um dia para a troca. Uma violência num corpo em falta.

A calçada do general continua triste – mas agora tem luzes falsas penduradas em arcos de ferro. O meu guardião rumina pensamentos de sabotagem.

O meu guardião olha há várias horas para uma tampa de caneta. É de temer o pior.

Um poeta procura decifrar um corpo. De mãos nuas e ainda com cinza nos olhos.

Anoitece na casa de passar as tardes. Colamo-nos às paredes e esperamos pelo primeiro grito.

Perscruto sombras no negro das paredes. Antigamente, vertiam copiosas lágrimas.

Acendo um livro – mais um. As cinzas correm para o rio mais próximo.

Em tempos, o meu guardião aprendeu a arte de enxertar rios. Agora é a minha vez.

Onde guardaste a memória? O meu guardião é um ser infinitamente paciente.

Não mordas as palavras por dentro, ataca o meu guardião, o centro é demasiado amargo. Eu sei, mas agora não posso parar.

Na China fabricam cadernos de capa vermelha com uma rosa, vermelha, em baixo relevo.

Falta-me um rio de sombras. E a ameaça de uma tempestade. Recomeçar tudo.

Um corpo vazio fere. A escama das palavras fere – a ordem dos factores não é arbitrária.

Ou o contrário: um turbilhão de palavras num corpo sem ar. Ou o contrário.

No alto da cidade deixei palavras em equilíbrio precário. Em baixo, o rio – entre rios.

Na casa de passar as tardes, especula-se: com quantas palavras se faz um rio?

Não me decido: é casa ou prisão? Ou: uma não existe sem a outra? Ou: é tudo uma questão de pronúncia?

O meu guardião: uma casa faz-se de firmezas. Eu: com quantas, exactamente?

De noite os nomes resistem. Por isso inventamos sombras.

Cresceu mais um rio subterrâneo sob a casa de passar as tardes. Sangue das noites.

Não é possível lavar um rio, lembra-me o meu guardião.

Andamos, eu e o meu guardião, confundidos com os rios. Voláteis. De humores. Vagos e fugidios.

A calçada do general está vestida de luzes de antes das cinzas.

Por penúria de matéria refaço mais uma vez o inventário.

Também conto palavras. Em cada contagem uma perda. O dilema é: emudecer ou arriscar.

A pergunta já não é: qual será a última palavra? Mas: onde estará?

Há um tempo para tudo, dizem. E depois, sempre, o embaraço de um gesto fora de tempo.

O meu guardião não sairá nunca da casa de passar as tardes. Nem mesmo quando a sua cor e a das paredes se confundirem.

Nem um som. Nem um gesto. Noite densa.

Passamos muito tempo a inventar perguntas. Ontem foi a minha vez.

Se desistir não chego lá. Se perseverar também não.

Vinho tinto aquecido numa rocha ao rubro. Um acorde de viola de arco. O sexo húmido.

Quantas vezes subiste e desceste a calçada do general? Faço esta pergunta inutilmente – se tivesse resposta também ela não guardaria a chave do enigma. Partiste. Eis um acontecimento tão indeclinável como um rio preso ao seu destino. E palavras a mais.

A casa de passar as tardes é frágil. Sabê-lo, fortalece-a.

Uma partícula de dúvida aniquila um gesto. E a dúvida é: como ter a certeza da decisão de um gesto?

Para um lado ou para o outro? Se alguém sabe a resposta, não a partilha. O meu guardião rasga papéis inúteis.

Sob a casa de passar as tardes, um rio (mais um?) reduz as margens. Na calçada do general, esvai-se a luz.

O meu guardião pede-me para lhe contar uma história. “Era uma vez um rio...”

Meaume, o gravador, morreu em Utrecht, aos 50 anos, nos braços de Marie Aidelle.

Como fazer uma pergunta com uma palavra cindida?

A água dos rios subterrâneos agita-se. No firmamento, uma lua nunca vista.

Lembro-me: sugámos laranjas azuis. Sob uma tempestade. Não me lembro se rimos.

Nas costas, no exacto instante de um beijo, o calor do sol de um verão tardio.

Na calçada do general, as casas estão ligadas aos seus rios por longas linhas finas e invisíveis.

Uma falha é sempre a última falha. De umas vezes, morre-se. De outras, não.

Os rios subterrâneos conjugam-se em labirinto. A foz como enigma comum.

O meu guardião quer abrir um buraco no chão e sorver um rio.

Um corpo enrijece com a secura das palavras.

O meu guardião inventa um sorriso para findar a noite.

Para trespassar corpos, as palavras vomitam o mundo de trás para a frente.

O tempo dissolve os ângulos da casa de passar as tardes. As paredes cobertas de verdete exsudem em espasmos lentos.

Quando estão serenos, os rios acomodam-se num sentido comum – arriscam-se a percorrer juntos todo o caminho da morte.

A quietude já não pertencerá a este tempo. São inúteis todas as palavras. Todos os corpos.