Vinho de cheiro, escravos e lava
«[...] O picaroto não tem saída, de um lado a terra maluca que sem mais nem menos se amotina, convulsiona, escoiceia, mula manhosa de pernas para o ar mostrando o reverso, a barriga mais clara onde o pelo guarda o placar da cilha; do outro o mar, mar atlântico, traiçoeiro, cheio de humores e frio. De Inverno ataca, a ponto de destruir bocados da costa e obstina-se na vila a escarvar nas portas. Na rua da Pesqueira, a principal, há protecções de madeira que defendem as casas do oceano como da fúria de um miura picado.
Na erupção do Pico dos Cavaleiros, em 1562, a lava esventrou a terra e dessa cesariana nasceu o “mistério” da Prainha. Solos de biscoito encarniçado onde farão a pulso despontar as vides ou estranhas árvores anãs, torcidas como anomalias japonesas. [...] Em 1718 outra erupção brutal varre searas, sufoca animais, aterroriza gente, as bocas de fogo abrem da terra e saem do mar arranques de lava. Depois, arrefeceu nos “mistérios” de S. João, Bandeiras e Santa Luzia. Em 1720 nova calamidade, de Julho até Dezembro escorreram sempre cinco cadeias ígneas até ao mar, solidificando outro “mistério”, o da Silveira. No chão, urzela, manto da terra ardida e lava solta. Conta-se que nesta deslocação costa a costa uma faixa permaneceu virgem. Um boi pastou até petrificar a lava, prometido ao Espírito Santo, os elementos respeitaram o que seria mais tarde sopa sagrada de pobres e vizinhos. Agora parece tudo apaziguado. [...]
Ao descer no Pico tende-se à ilusão, após o massacre das ruas lisboetas aparece bucólica, esquece-se quase a armadilha. As ilhas são perigosas, demasiado jovens, ainda não fincadas nem definitivas, cumes apenas de montanhas submersas; circulam e circundam-nos entre mar e lava, crateras donde não há saída senão para o mar. Foge-se do Pico, não se abala calmamente. É uma espécie de Deserto dos Tártaros, a fortaleza de Dino Buzzatti. Tal como acontecia à guarnição sentimo-nos espiados, S. Jorge não nos larga, sempre a reboque, e o Faial, em frente, tem-nos sob escolta. E a culminar, o olho do vulcão, Big Brother alerta onde quer que estejamos. Vê-se de toda a ilha, às vezes encoberto é apenas suspeita, outras envolve-se de véus lilases, ou azuis escuro. E se se ofende? E se derrama raiva de estar sempre preso à ilha?»
(Fátima Maldonado (com António Pedro Ferreira, fotografia), Lava de Espera, Câmara Municipal das Lajes do Pico, 1996: 17-18
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