quinta-feira, agosto 07, 2003

VAI E VEM

Este texto não foi disponibilizado na edição on-line do Público quando saiu em papel; ainda hoje, quem quiser lê-lo tem de o pagar ao Público do sôr Zé Manel Furnandes: queres “serviço público”? Págasu! Aqui não se paga: foi posto por mim “à pata” – com muito gosto, mas com tempo retirado a outros prazeres; as fotos, lamento, surripiei-as não sei onde.

“Vai e vem”

1. Não vim logo que soube. Tive que dar tempo ao tempo. Um tempo para as idas, outro para as voltas. Mas, desde que vi, logo soube que este não era filme que se aquietasse com o ponto de vista que dizem ser de Sírio, ou da galáxia inicial de “A Comédia de Deus”. Sírio nele (nada a ver com Cães Grandes ou Cães Maiores) só se for a Estrada de Damasco e o que alguns sabem que aconteceu nela. Coisas muito próximas, demasiado próximas, nenhuma marchetada distância. Tudo isto para dizer que eu sei que vou escrever sobre o último filme de João César Monteiro e sei que João César Monteiro morreu no cinema e morreu na vida. “Vai e Vem” veio e vai com a marca da morte. E se pensarem – os lusíadas são mui coitados – que “marca da morte” parece título de filme de terror, não serei eu quem vos afaste dessa pista. Embora muitas outras me pareçam bem mais sedutoras.



2. Aí pelos meados do século findo, esteve muito em voga dizer-se que a “última obra” representaria um “topo”. Em tempos – mas sempre no século passado – organizei mesmo um ciclo com últimas obras, para examinar esta questão. Como João César Monteiro diz a Jacinta a terceira das suas mulheres-a-dias, a propósito de outras coisas que também aparecem feitas –, “as opiniões dividem-se” e “é com a subjectividade de cada qual”. Mas, se há “últimas obras” que nada parecia predestinar as últimas (em nos distraindo ou em Deus se distraindo, acontece), há “últimas obras” que todos, a começar pelo próprio, sabiam que seriam últimas. “Vai e Vem” está neste caso. O tal saber de experiências feitas (por vezes tão falaz) não se inquietou com o filem seguinte. Atemorizou-se à ideia de que “Vai e Vem” não acabasse, que o movimento da vida cessasse antes do movimento da câmara. Por muito pouco necrófilo que se seja, é quase impossível deixar de associar filmes filmados nestas circunstâncias a filmes-testemunho.
Quando, num primeiro plano especular, que parece póstuma homenagem a tantas e tão belos planos especulares da obra de César, se vai Urraca – a das barbas – que, sem elas ficou igual, “sem tirar nem pôr”, a Adriana, essa dimensão, sempre latente, invade tudo (banda-imagem e banda-som) na nona das dez viagens do autocarro da carreira 100. É quando o coro dos ucranianos canta a canção “Enganaste-me, traíste-me”. E o protagonista ou a protagonista da canção (nesse coro, o sexo é indefinido) também foi enganado e traído dez vezes, entre a segunda-feira de uma semana e a quarta da semana seguinte.
É a seguir a essa viagem que lemos no autocarro, onde, logo no princípio, víramos, em vez dos habituais anúncios, “A única luz é a do arcabuz”, a frase “Some case rambling”. No filme de Minnelli de 1959, alguns (sobretudo verdade para Shilrey Maclaine) passaram a correr. Neste, João Vuvu passou a “vaguear” ou a “vadiar”. João de Deus, Max Monteiro, João Vuvu, ou seja quem for o personagem que João César Monteiro habitou entre as “Recordações da Casa Amarela” (1989) e “Vai e Vem” (2003) foi, acima de tudo, o Vagabundo. Talvez, depois de Chaplin, ninguém merecesse tanto esse nome como ele.
Vagabundos são as almas e os corpos penados. Sem eira nem beira, ou com eiras e beiras desvairadas e desbocadas. Às vezes dá-nos para rir, outras vezes para chorar.



3. Não me apoquenta nem me arrefenta que me digam que “Vai e Vem” (o projecto) já estava escrito antes de João César Monteiro ter tido a maleita, ou a coisa má, de que fala o povo. A abissal diferença, que se começa a carregar na única vez que João Vuvu não pára na paragem do costume e na única noite (pasmosa noite, pasmoso plano) em que o vemos sozinho, sentado no banco que há debaixo do caramanchão que suporta as ramagens do centenário cipreste (“cupressus Lusitanea Miller”), a abissal diferença, dizia eu, e viu ele, é que quando voltarmos ao caramanchão e ao cipreste, o olho que nos olha e que nós olhamos é um olho morto. Efémero triunfo da imagem fixa sobre a imagem animada? Eu sou dos que acreditam nisso. Mas isso nada retira ao horror do olhar que parou. É por isso que se fecham os olhos aos mortos, para parecer que dormem. O olho que nos olha durante insuportáveis minutos, no final do filme, até que termine o moteto “Qui Habitat” Josquin Desprez, não se fecha, nem ninguém o fecha. Antes vemos, reflectida nele, a árvore dos mortos e, durante alguns segundos (fizeram-me ver, pois eu sozinho não seria capaz), uma mancha encarnada, talvez um vestido de mulher ou uma mulher que passa vestida nele.


4. Quando João Vuvu e Fausta (Manuela de Freitas) vão aos refrescos, antes de irem aos leões de São Bento e ao plano radicalmente mais subversivo de toda a história do cinema português, Manuela de Freitas fala de irrealidade: “Parece que estive não sei onde...”. Responde-lhe César: “Tens essa impressão de irrealidade porque estiveste, de facto, no outro mundo, mas não te preocupes: regressaste viva de entre os espectros.” “Cheirava a mofo”, comenta ela. “É o cheiro do mundo das quimeras”, explica ele.
Para mim, não sei bem explicar por que é que esse sentimento de irrealidade me parece acompanhar não só aquele longo plano fixo como quase todos os outros que se referem às mulheres de Vuvu (além das já mencionadas, Custódia, a da cara-sem-olhos, Narcisa “Narcisa with the wind”, ou Bárbara, a mulher-polícia).
Os sinais exteriores são bastante reconhecíveis para quem conheça o cinema de João César Monteiro. Lá estão, desde o começo, a árvore primordial e o Príncipe Real; João César Monteiro como só ele, inimitável e único; as meninas de João César, umas novas outras antigas, inimitáveis e únicas; os enquadramentos inimitáveis e únicos; a belicosa coexistência entre o sagrado e o profano; o “pas de plaisir sans pénis”; a prodigiosa inventividade e riqueza dos melhores diálogos jamais escritos em português; as múltiplas citações e autocitações.
Mas João Vuvu é muito diferente de João de Deus. Se tem, como o outro tinha, a resposta pronta (muitas são antológicas e algumas ontológicas), nunca tem a autoridade do outro, nem o seu tom sentencioso e implacável. Recorre bastante menos aos provérbios e, se nenhuma das meninas lhe faz o ninho atrás da orelha, a nenhuma trata por cima da burra.
À excepção do já tão falado plano final, nunca o vemos em grande plano e assim o olhar de César parece, mas quase nunca é. Só por uma vez, antes de chegarmos às portas da morte, eu vi um plano que podia ser do João de Deus antigo. Inevitavelmente, reporta-se ao cipreste e reporta-se a um vai e vem. A rapariga de bicicleta que passa e volta a passar. A certa altura, ele levanta-se, dá um corridinha, com aqueles passos dele e parece que ela venha ou que ela vá. Mas logo desiste. Meninas daquelas já não são para ele. São aparições, água que escorre. O contrário de Emília, a última que permitiu que ele lhe abençoasse a cueca.
Quer isto dizer que “Vai e Vem” não tem o sopro de outrora? Se pensarem nisso, “mea culpa”. O que eu quero dizer é que o movimento – aqui – é para o fundo e para dentro e que toda a comédia acabou, mesmo quando é zarzuela. Dividido em cenas como o projecto de “La Philosophie dans le Boudoir”, de que este filme herdou a “posição” ou o “dispositivo”, “Vai e Vem” recapitula, em total solidão, o que já só pode ter vida no eterno retorno do cinema.

5. Mas é impossível acabar sem falar do mais desmedidamente genial.
Na 10ª e última viagem – única durante a noite e ao fim da noite –, João Vuvu é o único passageiro. Até que entra aquele miúdo com o cãozinho e o acordeão. “Apita o combóio / Vai sempre a apitar”. Lembramo-nos do genérico e do fígado lançado às aves. E só na cena das “Recordações”, quando João de Deus visitou a mão, nas escadarias do solar, houve tanta doçura e tanta dor. “Por mim, fazias 11 anos.”
Mas dele já não depende nada, que lhe foram ao sítio onde a Alemanha perdeu a guerra, como algures o próprio César escreveu. O sonho da morte a preto e branco é o sonho de quem vai morrer. É Dreyer do avesso ou seja do direito. Qualquer outro comentário seria blasfémia. A cor volta e “a menina dos caracóis e lacinho no cimo da cabeça abeira-se do esquife, empoleira-se numa cadeira e derrama sobre o defunto, em câmara lenta, uma chuva de pétalas de crisântemo.” Contam-se pelos dedos de uma mão momentos de cinema como esse.
E ainda há Dafné, a filha de Gaia, ou a futura Pasifae, aquela que só lhe pôde dar a sombra, aparecendo e desaparecendo do alto da árvore. “Não te conheço”, diz-lhe João. “Eu, sim”, responde a ninfa. “Vejo-te todos os dias, quando vais e quando vens.”
João veio numa tarde e deu de comer aos pombos. João vai-se noutra tarde, à sombra do acipreste. “Quando fores ter com a tua amada, João, nunca te esqueças de levar o chicote.” O que isto quereria dizer só um o saberia e morreu. Chamou-se João César Monteiro. “Vai e Vem” também pode ser o seu Rosebud. Rosebud é uma imagem recorrente de “Vai e Vem”.



João Bénard da Costa, in Jornal Público, 18 de Julho de 2003: 10.

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