terça-feira, setembro 30, 2003

Afectos (35)


Fandango

Estava tudo certo nele: o sorriso,
o modo lento de chegar
ao sítio onde as cervejas
me arrefeceriam para sempre
o coração. Só lhe faltavam as pernas,
que não pude saber como perdera.
Era o dono da taberna, do Fandango,
que eu frequentava nos intervalos
do liceu, sozinho, ou muito depois das aulas.
Às vezes almoçava lá, sabendo que
seria o único a fazê-lo e gostando disso.
O consumo de álcool não dependia,
nesses anos, de quaisquer decretos-lei
sobre a idade. Espaçosa, asseada,
parecia-me a taberna ideal
para quem tinha, a contragosto,
dezasseis anos e nenhum poema.

Da última vez, recebeu-me apenas a senhora.
Perguntou-me se eu sabia. Não, não sabia
que ele tinha morrido «tão novo, coitado».
Ser «novo» adquiria nos lábios a força
do muito amor, pois ultrapassara já os setenta.
Mas eu, talvez mais velho, senti-me fulminado
por esse gesto de rara ternura. Só não regressei
porque, alguns dias depois, aporta apareceu fechada.
Nunca saberei se foi ao seu encontro, achando
que uma cadeira de rodas não era companhia de homem.

A morte é como os taberneiros: não pergunta a idade.
Serve-nos, indistintamente, cicuta em copos lavados
e convida-nos de rosto no chão para o último fandango.

Manuel de Freitas, Beau Séjour, Lisboa, Assírio & Alvim, 2003: 39-40



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