sábado, setembro 06, 2003

A POESIA DE AGORA E A CONTRIBUIÇÃO AUTÁRQUICA


O editor Reis-Sá publicou na folha do sôr zé manel furnandes (suplemento Mil Folhas, Sábado, 26 de Julho de 2003) um texto sobre a “nova poesia portuguesa” que mereceu alguns comentários na blogosfera (A Natureza do Mal, por exemplo). Hoje, no mesmo local, Pedro Mexia publica a sua opinião. O texto de Reis-Sá já não se encontra disponível na edição on line da folha e o mesmo acontecerá ao texto de Mexia daqui a pouco tempo (é a democracia, meus amigos). Por isso, resolvi deixar aqui estampados os dois textos. Devo salientar que subscrevo as opiniões de Mexia sobre o assunto.

«A Poesia de Agora»
«Diga-se primeiro da propriedade, de como sou leitor de poesia, editor e organizador da antologia "Anos 90 e Agora - Uma Antologia da Nova Poesia Portuguesa" e de como não sou crítico, professor de literatura, ensaísta. Posto isto, fale-se da mais nova poesia portuguesa.
Desde há poucos anos voltou-se a falar em grupos, famílias, afinidades. A poesia que, desde o final dos anos 70 até ao início do novo século, se via entregue a indivíduos de tão diferentes poéticas, teve nestes últimos tempos um reagrupamento, por afinidades, como se se pudesse falar de uma nova geração. E, a meu ver, pode.
A antologia supra-citada, que organizei em 2001, tentou fazer um ponto de ordem das diferentes questões que os poetas estreados na década de 90 colocavam. Tendo assumido a melancolia como fio de união não lhe dei a importância que outros, depois, me fizeram parecer dar. Era - é - apenas um fio que os une, uns mais enraizados nela, outros menos. Fio ténue portanto, não existiam, nem existem durante os anos 90, gerações afins na forma de fazer a poesia. Isso surge apenas a partir do início deste século.
Não me parece é que exista apenas uma geração, um caminho novo na poesia portuguesa como muitos críticos ou leitores de poesia admitem. Além de uma vertente tão festejada pela crítica, e de dois ou três nomes que se assumem como vozes mais isoladas (falo de, por exemplo, Maria Andresen de Sousa ou Gonçalo M. Tavares), existe outra geração tão ou mais importante pelo que de novo vem fornecer à poesia portuguesa.
A mais festejada tem como figuras tutelares Pedro Mexia e Manuel de Freitas. Este, organizador da "tendenciosíssima" (não, não é uma crítica depreciativa) antologia "Poetas Sem Qualidades", tendo editado em três anos oito (!) livros, parece querer ser porta-estandarte de toda a poesia quando em verdade a sua geração se vê em oposição a novos grupos perfeitamente definidos: outros escrevem outras coisas, tão ou mais interessantes. Manuel de Freiras é o arauto da "pobreza franciscana", introduzida por Luís Adriano Carlos no último número da revista "Apeadeiro", devedora em tudo da "rima pobre" de Joaquim Manuel Magalhães e, nas palavras do seu outro mais importante cultivador, Pedro Mexia, saindo "directamente dos anos 70". Outros poetas surgem neste grupo, homogeneizado pelas razões que tentarei explanar mais à frente: Carlos Luís Bessa, Jorge Gomes Miranda, José Miguel Silva, Ana Paula Inácio e Rui Pires Cabral. Um franciscanismo despojado de metáforas, pobre, que em vez de escrever a poesia como uma arte sublime a retém nos urinóis, nos "shoppings" e nos telemóveis, aproximando-a, a espaços, de referências eruditas como Bach e os clássicos literários, como que estabelecendo a erudição que um "shopping" não fornece. Ana Paula Inácio e Rui Pires Cabral destacam-se deste grupo por conseguirem ultrapassar exactamente o simplismo em que resultam as poéticas dos outros autores.
As perguntas que se podem fazer, antes mesmo de falar da outra geração, tão pouco em voga na crítica dos nossos dias, são: porquê a assunção destes poetas como uma nova e tão interessante proposta? Terão eles inovado sobremaneira?
A resposta à segunda pergunta é não, já as coisas pequenas e simples foram exactamente sublimadas por Ruy Belo. A resposta à primeira parte da outra actividade que quase dois terços (quatro em sete) dos poetas supra-citados têm nas lides poéticas portuguesas de agora - a crítica. Dos sete poetas citados, quatro são críticos com propriedade reconhecida. Falo desta propriedade a partir dos periódicos onde a exercem, entregue aos olhos de todos aqueles que queiram ler um semanário no fim-de-semana. Manuel de Freitas e Carlos Luís Bessa no "Expresso"; Pedro Mexia, até há muito pouco tempo, no "DNA"; Jorge Gomes Miranda (crítico assumidamente de poucos que não sejam do seu círculo de amizades e pretenso organizador da antologia "Tráfico: Antologia da Nova Literatura Portuguesa" que Luís Miguel Queirós e Carlos Câmara Leme criticam no Mil Folhas de 29 de Março como se já estivesse editada - não está) no PÚBLICO. Acabam, assim, por criar uma geração, tão afanada pelos críticos mais reconhecidos na praça, não por mérito na sua escrita da poesia mas pelo estatuto que, com outro mérito que não poético mas de salientar, lhes granjeou tanta fama - o mérito da crítica.
E a outra geração de que falei? Tão ou mais importante, tem em poetas como Daniel Faria (entretanto precocemente desaparecido), valter hugo mãe, Jorge Melícias, Vasco Gato, Pedro Sena-Lino ou Tiago Araújo os nomes mais interessantes. De forma alguma saídos dos anos 70, cultivam uma poesia imagética, devedora de nomes como Mário Cesariny, Herberto Helder ou Luís Miguel Nava.
O regresso ao real, tão desejado por Magalhães, já aconteceu, foi visto, sentido e revisto. Agora sente-se neste segundo grupo uma volta ao sublime, longe do simplismo e permitindo antes a simplicidade.
É claro que esta última geração de que falo não tem, e muito dificilmente poderá ter nos tempos mais próximos, o favor da crítica. Sem vozes que assumam a sua presença nos periódicos da nação, que teorizem sistematicamente esta nova vertente, seja criticando positivamente algumas obras seja, como o faz tantas vezes Manuel de Freitas, criticando depreciativamente outras, esta geração que assinalo acabará por ser notada já a procissão saiu há muito do adro.»
Jorge Reis-Sá

«Contribuição Autárquica»
«1. Jorge Reis-Sá (JRS) publicou no Mil Folhas de 26 de Julho o texto "A poesia de agora", no qual, sob a capa da contribuição para um debate sobre a nova poesia portuguesa, ajustava contas pessoais e engendrava teorias da conspiração. Não é infelizmente a primeira vez que o faz: na pénultima edição da revista "Periférica" já o tinha ensaiado, e meses depois publicou um lamentável número da revista "Apeadeiro", recheado de grosserias, insinuações, revanchismo e tacanhez. Agora, indignado com uma putativa construção do cânone dos novíssimos - nomeadamente no dossier sobre "Nova Poesia Portuguesa" organizado pela revista "Relâmpago" - oferece-nos um novo exercício de desorientação e preconceito. Não vou por agora comentar as frases que me dizem directamente respeito, sobretudo a lista policial que o Jorge parece manter acerca do que é ou não "poético", ou as estafadas considerações, eivadas de pobreza de espírito, acerca da "poesia do centro comercial". Mas JRS ataca poetas que estimo, e isso não quero deixar passar em claro, mesmo cinco semanas depois (devido à paragem estival do suplemento).
2. JRS anuncia logo no início do seu texto que não é crítico, ensaísta ou professor de literatura. Mas não é preciso exercer nenhum desses mesteres para esboçar um discurso com alguma coerência e algum rigor. Nada disso acontece: JRS entrega-se a uma leitura bastante superficial de alguns autores, que correspondem em grande medida aos antologiados no número da "Relâmpago", caracterizando-os como praticantes uma poesia de pobreza franciscana, despida de metáforas, trivial e simplista. São tudo epítetos apressados, ou que têm um significado muito diferente do que JRS lhes quer dar. Se JRS enuncia, acertadamente, afinidades entre alguns destes poetas, uma suposta unidade entre as várias poéticas é um artifício retórico que os próprios poemas desmentem. Talvez JRS me consiga explicar - mesmo não sendo catedrático - as semelhanças entre, por exemplo, Carlos Bessa e Luís Quintais. Ficava muito agradecido.
3. O texto sem dúvida sincero e espontâneo de JRS vem, porventura, comentar a "Relâmpago" mas sobretudo reagir tardiamente à antologia de tendência "Poetas sem Qualidades", organizada por Manuel de Freitas, bem como a várias críticas negativas que Freitas tem publicado sobre autores da Quasi, a editora dirigida por JRS. A par disso temos, bem entendido, um acto de afirmação da antologia que o próprio Jorge organizou, "Anos 90 e Agora". Mas para contestar a obra alheia e afirmar a própria o editor e crítico amador faz uma amálgama entre Manuel de Freitas e outros autores, que imagina em sótãos a impor os "seus" autores e a destruir os autores alheios. Assim, JRS alerta para a construção de uma galeria de "novíssimos" que visivelmente o desgosta. E porquê? Por um lado porque estes autores são, diz, um prolongamento da "poesia de 70", o que está longe de ser genericamente verdade; por outro, porque não trazem nada de novo senão mais poesia do "regresso ao real", o que é genericamente verdade mas pressupõe que a literatura vive apenas de rupturas. Além disso, diz JRS, estes poetas renunciaram ao "sublime". Infelizmente, JRS não percebe que a noção de "sublime" em poesia sofreu, ao menos desde Baudelaire, uma profunda mutação, e que para muitos poetas se tornou virtualmente infrequentável. Manuel de Freitas explica isso mesmo no prefácio à antologia que tanto incomoda JRS. E com uma pertinência crítica que não se afasta às três pancadas.
4. Uma outra crítica, gratuita e ofensiva, pode surgir como uma acusação nomeadamente aos organizadores da "Relâmpago": a de que quatro dos poetas presentes devem a sua inclusão ao facto de exercerem a crítica literária. Assim, para além de um cheirinho a "troca de favores", JRS deixa também entender que esses poetas teriam sobretudo a tarefa de fazer "reagrupamentos" de autores, criando assim novas tendências. Mas poetas que exercem a crítica literária é, como JRS não ignora, um dado vulgaríssimo dentro e fora de portas; que esses críticos procedam a alguns "reagrupamentos" faz parte da sua actividade. A conclusão de que se servem disso para se afirmar como poetas, essa, não passa de uma infundamentada atoarda, daquelas que JRS gosta, está visto, de lançar, embora sempre escudado no seu jeito compostinho.
5. Curiosamente para quem denuncia a fabricação de um grupo e de uma tendência, JRS elenca cinco "humilhados e ofendidos" que a crítica supostamente ignora, fazendo deles precisamente um grupo e uma tendência, se bem que a caracterização seja vaga e embaraçosa. Adivinharam: um regresso ao "sublime". Ou então é concreta e ainda mais embaraçosa: esses poetas, diz-nos o autor do texto, estão na linha de Mário Cesariny, Herberto Helder e Luís Miguel Nava, o que por caridade não devemos comentar. Percebo perfeitamente que JRS seja defensor de uma poesia metafórica, hermética e visionária - a que chama, de forma despropositada, uma poesia "imagética" - e que, olímpico, não goste do realismo comezinho dos seus contemporâneos. Acontece que essa poesia que patrocina tem imensos riscos, e só raros poetas conseguem superar esses riscos: em anos recentes só me lembro de Daniel Faria. Depois, as obras dos cinco autores novíssimos defendidos por JRS variam literariamente entre o interessante e o péssimo, e os interessantes não mereciam o mesmo saco que os péssimos. Finalmente, convém dizer que o mais recente livro de cada um desses autores foi publicado pela Quasi, editora da qual JRS é responsável. Percebemos então que o aviso era honesto: JRS não fala como crítico, mas como editor, e pede apenas atenção para os seus autores. O seu texto, portanto, é mais uma reclamação comercial do que uma reflexão séria sobre a poesia desse "grupo". E denota, como se viu no número de "Apeadeiro", uma triste concepção da literatura como luta de poder. Não confundas a poesia, caro Jorge, com eleições autárquicas.»
Pedro Mexia

Sem comentários: