quinta-feira, setembro 25, 2003
O corpo contado (2)
O Corpo do Outro
CORPO. Todo o pensamento, toda a emoção, todo o interesse suscitados no sujeito apaixonado pelo corpo amado.
1. O seu corpo estava dividido: de um lado, o próprio corpo – a pele, os olhos –, terno, caloroso, e, de outro, a voz, breve, moderada, sujeita a momentos de afastamento, uma voz que não oferecia o que o corpo oferecia. Ou então: de um lado, o seu corpo macio, morno, débil na sua justa medida, protector, fingindo-se acanhado, e, de outro, a voz – a voz, sempre a voz – sonora, bem definida, mundana, etc.
2. Assalta-me, por vezes, uma ideia: ponho-me a examinar longamente o corpo amado (...). Examinar quer dizer revistar: revisto o corpo do outro, como se quisesse ver o que há lá dentro, como se a causa mecânica do meu desejo estivesse no corpo adverso (pareço-me com esses garotos que desmontam um despertador para saber o que é o tempo). Essa operação processa-se de um modo frio e surpreso; estou calmo, atento, como se estivesse diante de um estranho insecto que subitamente deixo de recear. Certas partes do corpo são particularmente adequadas a esta observação: as pestanas, as unhas, a raiz dos cabelos, os objectos muito específicos. É evidente que estou então a fazer de um morto um fétiche. A prova está em que, se o corpo que examino sai da sua inércia, se se põe a fazer qualquer coisa, o meu desejo se modifica; se, por exemplo, vejo o outro pensar, o meu desejo deixa de ser perverso, torna-se imaginário, regresso a uma Imagem, a um Todo: amo novamente.
(Via tudo do seu rosto, do seu corpo, friamente: as pestanas, a unha do dedo do pé, a finura das sobrancelhas, dos lábios, o esmalte dos olhos, um determinado sinal, uma maneira de estender os dedos ao fumar; estava fascinado – não sendo o fascínio, em suma, senão a extremidade do desprendimento – por essa espécie de figura colorida, de faiança, vitrificada, onde podia ler, sem nada compreender, a causa do meu desejo.)
Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso, Lisboa, Edições 70, 1981 (1977), 70: 96-7
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