sexta-feira, setembro 26, 2003

"A minha mãe deu-me a vida, espero agora dela que me ofereça a morte"




UM DRAMA ABRE O DEBATE SOBRE A EUTANÁSIA EM FRANÇA
Por ANA NAVARRO PEDRO, em Paris
Público, Sexta-feira, 26 de Setembro de 2003

"A minha mãe deu-me a vida, espero agora dela que me ofereça a morte". Estas palavras terríveis são assinadas por Vincent Humbert, um jovem francês de 22 anos, tetraplégico, cego e mudo, num livro publicado ontem em França, "Peço-vos o direito de morrer" (editora Michel Lafon).

Marie Humbert tentou ajudar o filho a morrer. Quarta-feira, ao fim do dia, a mãe estava sozinha com Vincent Humbert no quarto do centro hospitalar onde o jovem paralítico está internado, e aproveitou para lhe administrar uma forte dose de barbitúricos pelo intermédio da sonda gástrica que o alimenta. Depois, ficou ao lado dele. Mas o pessoal médico apercebeu-se de uma queda do estado de saúde de Vincent, e colocou-o em reanimação. O filho ficou em estado de coma profundo, mas não está em perigo de vida.

Ontem de manhã, a mãe foi colocada em prisão preventiva "organizada em condições de protecção particulares para a tornarem o mais humana e serena possível", segundo o procurador. O advogado de família foi autorizado a visitar Marie Humbert, e encontrou-a num estado de "grande aflição". A mãe soube muito depressa que não tinha conseguido cumprir a sua promessa. Entre o suplício de ter tentado tirar a vida ao filho, e a angústia de o saber na impossibilidade de conseguir agora morrer, se sobreviver, a mãe ficou devastada. A meio da manhã, foi autorizada a recolher-se à cabeceira do filho. E de tarde, o Ministério Público decidiu libertar Marie Humbert - "a incriminação será feita a seu tempo" - traduzindo assim a desolação da justiça com um caso tão pungente. A mãe passou a noite num centro psicoterapêutico, numa decisão conjunta com o procurador.

"É dramático. Vincent disse sempre que queria morrer desde que encontrou um meio de comunicação, e Marie Humbert continua a querer o que o filho quer. Ninguém sabia, mas Vincent não queria estar ainda vivo quando o livro saísse", frisou o advogado da família, Hugues Vigier.

Nos dias que precederam a saída do livro, Marie Humbert tinha dito na rádio Europe1 que iria ajudar dentro em breve o filho a morrer, para respeitar a sua vontade e pôr assim um termo aos seus terríveis sofrimentos. Esta mãe que todas as testemunhas dizem "admirável", que abandonou tudo para se instalar na cidade onde o filho está internado, que sobrevive com pequenos trabalhos, e que passa todo o seu tempo livre ao lado dele, a fazer-lhe massagens para lhe aliviar as dores, a falar-lhe para o ligar à vida, era o último recurso de Vincent Humbert, que desde há três anos não tem cessado de pedir uma morte digna.

Um terrível acidente da estrada, em 2000, transformou o jovem bombeiro num legume, capaz apenas de uma ligeira pressão com a ponta de um dedo. Esta "capacidade" serviu-lhe para desfiar o alfabeto, fazer palavras, frases, e assim comunicar com a mãe e o pessoal do hospital que lhe ensinou esta técnica. Foi desta forma que "escreveu" o seu livro.

Sem hipóteses de qualquer melhoria, privado da vista, e sofrendo horrivelmente, pediu aos médicos para o ajudarem a morrer. Estes recusaram, recordando que a eutanásia é proibida em França. Em Dezembro último escreveu ao Presidente Jacques Chirac: "A lei dá-lhe o direito de indultar, eu peço-lhe o direito de morrer". Chirac recusou, e encorajou este jovem emparedado vivo na sua própria pele a "retomar gosto pela vida".

François de Closets, um escritor francês que assinou um livro sobre "O direito de morrer", acha "desumano que a sociedade tenha deixado uma mãe sozinha perante um pedido destes de um filho, sem qualquer recurso". Atacando a medicina, que "quis a todo o custo reanimar Vincent" depois do desastre, François de Clausets faz uma apreciação muito dura: "Se Vincent fosse filho de alguém importante, há muito que nos teria deixado. A desgraça dele é ser filho do povo".

Dois deputados, um da maioria de direita e outro da oposição de esquerda, pediram ontem conjuntamente uma evolução da legislação sobre a eutanásia em França.

Sem comentários: