CÚPULAS, BIZANTINAS, PIEDADE
«[...] Da mistura entre as dores do mar, as mortes matadas dos grandes cetáceos e as dos outros, seus captores por miséria, necessidade e vício, escutam-se ecos. Os olhos dos santos esperam ainda preces, rogos, voltem aqueles que partiram, lembram nomes de barcos, a canoa S. Miguel, a S.tº Cristo, casos, o rapaz, pé enrolado no fio da baleia arpoada e já não voltou. Tinha dezanove anos.
[...] Em Agosto voltei à mesma igreja. A chuva, de repente escurecendo a bagacina, envernizou mais as árvores do incenso. Cobrem o Pico, nascem em todo o lado, mas na Arrábida recusam subir. Falta-lhes humidade, precisam daquelas mudanças bruscas de clima, inconstante como uma mulher mordida pela angústia. Tão depressa ri e a ilha volta ao sol, como emburrica e chora amachucando de raiva o lenço, faias e cedros desgrenhando, desespero súbito. Voltei com o Bernardo pela mão, tem seis anos o filho do António Pedro. Meu companheiro de igrejas e arqueologias pergunta sempre: "Onde é que está Deus?". E se me via mais parada: "Estás a rezar?". Não sei se lá estaria Deus naquele dia de grandes lavagens e arrumações. As mulheres desviaram os genuflexórios e conversavam. Iam despejando baldes de água no chão, bonés americanos na cabeça. Nessa convivência o Altar das Almas parecia comprazer-se, descansar do papel papão que lhe foi distribuído no teatro do mundo.»
(Fátima Maldonado (com António Pedro Ferreira, fotografia), Lava de Espera, Câmara Municipal das Lajes do Pico, 1996: 7-8)
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